Limites Legais nas Alienações Fiduciárias: A Controvérsia sobre Preço Vil em Leilões Extrajudiciais de Imóveis

As expropriações de bens através de leilões, sejam judiciais ou extrajudiciais, representam um importante instrumento para efetividade das execuções. No entanto, é fundamental compreender que essas modalidades de leilões são regidas por legislações distintas, cada qual com suas particularidades e dispositivos específicos que norteiam os procedimentos e estabelecem os limites legais para a realização desses procedimentos. 

Enquanto os leilões judiciais são conduzidos dentro do âmbito do Poder Judiciário, sob a égide do Código de Processo Civil e demais normas processuais, os leilões extrajudiciais, principalmente aqueles que versam sobre bens objeto de alienação fiduciária, são regulamentados por leis específicas, como a Lei 9.514/97. 

Essa distinção normativa entre leilões judiciais e extrajudiciais ressalta a necessidade de atenção e interpretação precisa das disposições legais aplicáveis a cada contexto, visando assegurar a legalidade, transparência e equidade nas transações imobiliárias por meio de leilões. 

Neste cenário, surge a controvérsia sobre preço vil em leilões extrajudiciais de imóveis. Na esteira dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, a venda em público leilão de imóvel a preço vil, ou seja, por um valor significativamente inferior ao estipulado no mercado ou abaixo de 50% do valor de avaliação, suscita questões de natureza ética, moral e jurídica que devem ser devidamente consideradas.

Nesse contexto, a invocação dos artigos 187, 884, 422 do Código Civil e 805 do CPC se faz imperativa para sustentar o impedimento de tal prática, em leilões judiciais.

O artigo 187 do Código Civil veda o exercício abusivo de direitos, estabelecendo que aquele que, no exercício de um direito, exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim econômico ou social do direito em questão, comete ato ilícito. Portanto, a realização de um leilão de imóvel a preço vil, sobretudo quando este se distancia consideravelmente de seu valor real, caracteriza-se como um abuso de direito passível de nulidade.

O artigo 884 do Código Civil, por sua vez, reprime o enriquecimento sem causa, preceituando que aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, deverá restituir o valor recebido indevidamente. No caso de uma arrematação a preço vil em um leilão de imóvel, a disparidade entre o valor efetivamente pago e o valor de mercado pode configurar um enriquecimento indevido que clama pela aplicação desse dispositivo legal.

O artigo 422 do Código Civil impõe a mitigação dos prejuízos do devedor, estabelecendo que na conclusão de um contrato, as partes devem agir com boa-fé e respeito aos princípios da equidade e da justiça contratual. Dessa forma, a imposição de um preço vil em um leilão de imóvel pode acarretar prejuízos desproporcionais ao devedor, tornando-se essencial a consideração deste dispositivo na análise da situação.

Por fim, o artigo 805 do CPC determina que a execução deve ocorrer de forma menos gravosa para o executado, assegurando que sejam adotadas medidas que resguardem os direitos e interesses da parte em situação de vulnerabilidade. Quando se trata de um leilão de imóvel com preço vil, a aplicação desse dispositivo se mostra crucial para garantir a equidade e a justiça na condução do processo de execução.

Diante do exposto, a venda em público leilão judicial de um imóvel a preço vil, abaixo de 50% do seu valor de avaliação, pode ser contestada com base nos princípios e normas contidos nos artigos 187, 884, 422 do Código Civil e 805 do CPC, que visam coibir abusos, enriquecimento sem causa, mitigação de prejuízos e proteção do executado em procedimentos de execução judicial.

A diferenciação entre os leilões judiciais e os leilões extrajudiciais regulamentados pela Lei 9.514/97 é crucial para compreender as nuances envolvidas na determinação dos valores de arrematação. Enquanto nos leilões judiciais as normas e princípios do Código Civil e do CPC podem ser invocados para coibir práticas abusivas e injustas, nos leilões extrajudiciais regidos pela referida lei, a sistemática adotada segue parâmetros próprios.

Nos leilões extrajudiciais de imóveis fiduciariamente alienados, a Lei 9.514/97 estabelece regras específicas para a realização dos certames, inclusive quanto à definição do valor do segundo leilão. De acordo com a legislação vigente, o valor do segundo leilão é usualmente determinado com base no valor da dívida garantida pelo imóvel, podendo resultar em valores inferiores a 50% do montante de avaliação do bem.

Dessa forma, é importante considerar que, nos leilões extrajudiciais regulamentados pela Lei 9.514/97, a fixação do preço de arrematação para o segundo leilão com base no valor da dívida é uma prática legalmente prevista, ainda que possa resultar em valores abaixo do estipulado em avaliações de mercado. Nesse contexto, a aplicação dos dispositivos do Código Civil e do CPC, que visam garantir a equidade e a justiça nas relações jurídicas, deve ser ponderada levando em conta a especificidade da legislação que rege os leilões extrajudiciais.

Portanto, ao analisar a possibilidade de leilões extrajudiciais de imóveis fiduciariamente alienados ocorrerem com valores de arrematação abaixo de 50% do valor de avaliação, é essencial considerar a sistemática prevista na Lei 9.514/97 e suas particularidades em relação aos leilões judiciais, a fim de assegurar o cumprimento da legislação específica que rege essa modalidade de transação imobiliária.

Todavia, constatamos inúmeras decisões que afastam a especificidade da Lei 9.514/97 quanto a definição do valor do segundo leilão, considerando o valor mínimo de 50% da avaliação, como no caso de recente decisão do STJ no julgamento do Resp nº 2096465-SP, em 15/05/2024, pelo Ministro Relator RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, o qual sustenta que nos leilões extrajudiciais é vedada a alienação do imóvel por valor inferior a 50% do valor de avaliação, diante de alterações incluídas pela Lei 14.711/23.

Entretanto, nosso entendimento é diverso, defendemos que a alteração introduzida pela Lei 14.711/23 no §2º do Art. 27, é de que a sistemática do segundo leilão deve se basear no valor da dívida garantida pela alienação fiduciária, facultado ao credor na ausência de propostas que atinjam esse valor, a aceitação de um lance correspondente a pelo menos metade do valor de avaliação do bem.

Esses dispositivos legais claros e específicos demonstram que a legislação vigente possibilita a realização de leilões extrajudiciais com valores de arrematação que podem ser inferiores a 50% do valor de avaliação, desde que respeitados os critérios estabelecidos pela lei. Dessa forma, a aplicação correta e coerente da legislação, em conformidade com as modificações introduzidas pela Lei 14.711/23, é essencial para garantir a segurança jurídica e equidade nas transações de alienação fiduciária de imóveis.

Carla Fuentes Sales

Mestra em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES, advogada e professora de direito imobiliário no RID.

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