Direito real de habitação ex-cônjuge

A Impossibilidade do Direito Real de Habitação para o Ex-Cônjuge: Análise à Luz da Legislação Vigente e Decisão do STJ de 2024

Introdução

O direito real de habitação é um instituto relevante no Direito Civil brasileiro, previsto no art. 1.831 do Código Civil de 2002, que garante ao cônjuge sobrevivente o direito de permanecer residindo no imóvel destinado à moradia da família, mesmo que não seja proprietário do bem. Trata-se de uma proteção de caráter vitalício e gratuito, desde que o imóvel seja o único bem da herança destinado à moradia. No entanto, a aplicação desse direito no contexto de divórcios e a possibilidade de sua extensão ao ex-cônjuge têm sido temas de intensos debates no cenário jurídico atual.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2024 trouxe maior clareza sobre essa questão, ao consolidar o entendimento de que o direito real de habitação não se aplica ao ex-cônjuge após o término do casamento por divórcio. O presente artigo tem como objetivo analisar a impossibilidade desse direito ser concedido ao ex-cônjuge à luz da legislação vigente e da jurisprudência recente. Para tanto, abordaremos a estrutura do direito real de habitação, sua fundamentação legal, as razões que impedem sua aplicação aos ex-cônjuges e as alternativas jurídicas disponíveis para proteger a moradia em casos de dissolução conjugal.

Este tema é de grande relevância prática, visto que a moradia constitui um dos aspectos mais sensíveis nos processos de divórcio, especialmente quando há desigualdade econômica entre os cônjuges. A decisão do STJ de 2024 representa um marco importante no entendimento desse direito, mas também suscita debates sobre a necessidade de mecanismos mais amplos de proteção patrimonial e social. Nesse sentido, este estudo busca contribuir para a compreensão desse fenômeno, analisando as implicações jurídicas envolvidas.

Por fim, a análise será complementada por uma revisão doutrinária, destacando as posições de renomados autores sobre o tema e as perspectivas futuras no tratamento da moradia em processos de dissolução do vínculo matrimonial. A decisão recente do STJ, somada à legislação vigente, demonstra uma clara tendência de proteção restrita ao cônjuge sobrevivente, mas a questão da proteção ao ex-cônjuge após o divórcio continua a gerar discussões.

Dessa forma, este artigo será dividido em cinco tópicos principais, além da introdução e conclusão, abordando o direito real de habitação, a jurisprudência sobre o tema, os fundamentos da decisão do STJ de 2024, as implicações patrimoniais para o ex-cônjuge e as perspectivas futuras sobre a questão.

1. O Direito Real de Habitação no Código Civil Brasileiro

O direito real de habitação está disciplinado no art. 1.831 do Código Civil de 2002, que garante ao cônjuge sobrevivente o direito de permanecer residindo no imóvel que servia como residência da família, desde que este seja o único bem deixado pela herança. Trata-se de uma proteção destinada a assegurar que o cônjuge que ficou viúvo não seja desalojado do imóvel em que vivia, sendo uma prerrogativa personalíssima e intransmissível. A intenção do legislador é evitar que o cônjuge sobrevivente se veja em uma situação de vulnerabilidade econômica ou habitacional após a morte do companheiro.

Essa proteção se fundamenta no princípio da solidariedade familiar, que, mesmo após a morte de um dos cônjuges, impõe a obrigação de proteção ao cônjuge sobrevivente. No entanto, o direito real de habitação é limitado: aplica-se apenas ao imóvel que servia como residência familiar e somente se este for o único bem do espólio. Ademais, é importante destacar que o direito é vitalício, ou seja, enquanto o cônjuge sobrevivente viver, ele poderá usufruir do imóvel.

A doutrina brasileira também reforça a natureza restrita e excepcional desse direito. Autores como Maria Helena Diniz destacam que se trata de um instituto voltado exclusivamente para o âmbito sucessório, uma vez que a sua finalidade é evitar a precariedade habitacional do cônjuge viúvo. Dessa forma, o direito real de habitação não se confunde com outros direitos patrimoniais, como usufruto ou propriedade, sendo, portanto, um direito autônomo.

Contudo, o direito real de habitação não se estende automaticamente a todas as situações em que haja dissolução de uma união familiar. O instituto é restrito aos casos de falecimento de um dos cônjuges, não se aplicando às hipóteses de divórcio, o que é reforçado pela interpretação estrita da norma. O ex-cônjuge, portanto, não está amparado por essa prerrogativa, devendo buscar outras alternativas jurídicas para garantir sua moradia.

O legislador, ao prever o direito real de habitação, limitou sua aplicação ao âmbito sucessório. Dessa forma, quando o casamento é dissolvido pelo divórcio, não há que se falar em aplicação do direito real de habitação, o que será analisado com maior profundidade nos tópicos subsequentes.

2. A Impossibilidade do Direito Real de Habitação no Divórcio

A principal questão que impede a concessão do direito real de habitação ao ex-cônjuge em casos de divórcio é a interpretação restritiva da norma contida no art. 1.831 do Código Civil. A redação do dispositivo deixa claro que o direito real de habitação é uma proteção voltada exclusivamente para o cônjuge sobrevivente em caso de morte, não se aplicando ao término do casamento por divórcio. O divórcio, diferentemente da morte, dissolve o vínculo conjugal entre pessoas vivas, o que implica a extinção dos direitos e deveres matrimoniais, inclusive no que tange à habitação.

O fim do vínculo conjugal pelo divórcio desencadeia uma série de consequências patrimoniais que são reguladas pelo regime de bens adotado pelo casal, seja ele comunhão parcial, comunhão universal, separação de bens ou participação final nos aquestos. O imóvel que servia de moradia familiar, em regra, será objeto de partilha entre os cônjuges, e a divisão patrimonial não confere automaticamente o direito de permanência no imóvel a nenhum dos ex-cônjuges. Assim, o ex-cônjuge não pode pleitear a permanência no imóvel com base no direito real de habitação.

Outro aspecto relevante é que o direito real de habitação tem um caráter excepcional, sendo aplicado somente em casos expressamente previstos na legislação. Isso impede sua interpretação extensiva para além do que está disposto na norma. Como o divórcio não está contemplado no art. 1.831, a concessão desse direito ao ex-cônjuge seria uma violação ao princípio da legalidade, que orienta a interpretação e aplicação das normas civis.

A doutrina, de modo geral, corrobora esse entendimento, afirmando que a extensão do direito real de habitação ao ex-cônjuge no divórcio seria incompatível com a natureza do instituto. A dissolução do casamento por divórcio marca o fim das responsabilidades conjugais, e qualquer proteção à moradia do ex-cônjuge deve ser buscada em outros institutos, como a pensão alimentícia ou a negociação direta na partilha de bens.

Portanto, a impossibilidade de aplicação do direito real de habitação ao ex-cônjuge é resultado da interpretação restritiva da legislação vigente, da doutrina especializada e da própria lógica do sistema jurídico que regula as relações patrimoniais após o divórcio.

3. A Decisão do STJ de 2024 e o Posicionamento Jurisprudencial

A decisão do STJ de 2024 veio a consolidar o entendimento acerca da impossibilidade de extensão do direito real de habitação ao ex-cônjuge em casos de divórcio. O caso que originou a decisão envolvia um pedido de permanência no imóvel familiar por parte de um ex-cônjuge após o divórcio, alegando necessidade habitacional e a impossibilidade de arcar com os custos de uma nova moradia. O tribunal, no entanto, decidiu que o direito real de habitação não poderia ser concedido, pois a dissolução do casamento por divórcio não se enquadrava nas hipóteses previstas pelo Código Civil.

A decisão foi fundamentada no art. 1.831 do Código Civil, que limita o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente no caso de falecimento do outro cônjuge. O STJ reafirmou que o direito tem caráter personalíssimo, ou seja, é destinado exclusivamente ao cônjuge que permanece vivo após a morte do outro, visando proteger a moradia da pessoa em um momento de fragilidade decorrente do luto e da perda patrimonial. No entanto, esse cenário não se aplica aos casos de divórcio, onde há uma divisão patrimonial, e ambas as partes continuam vivas e capazes de prover para suas próprias necessidades.

Além disso, o tribunal destacou que a permanência no imóvel em casos de divórcio deve ser tratada no contexto da partilha de bens, considerando o regime de bens adotado pelo casal. Caso o imóvel seja comum aos dois cônjuges, ele deverá ser partilhado de acordo com o que for decidido judicialmente ou negociado pelas partes. Nesse sentido, o STJ reforçou que o direito real de habitação não pode ser utilizado como instrumento para prorrogar indefinidamente a moradia de um dos cônjuges no imóvel comum após o término do casamento.

Essa decisão do STJ foi amplamente discutida na doutrina, recebendo elogios por parte dos juristas que defendem uma interpretação estrita do Código Civil. A jurisprudência tem, cada vez mais, seguido essa linha de entendimento, evitando conceder direitos não previstos na lei e garantindo segurança jurídica nas decisões patrimoniais envolvendo ex-cônjuges.

Assim, a decisão de 2024 marca um ponto de referência importante para o Direito de Família e Sucessões, estabelecendo um precedente que reforça a distinção entre os direitos sucessórios e os direitos decorrentes da dissolução do casamento por divórcio.

4. As Implicações Patrimoniais e a Proteção do Ex-Cônjuge

Embora o direito real de habitação não seja aplicável ao ex-cônjuge em casos de divórcio, isso não significa que o ex-cônjuge em situação de vulnerabilidade fique desamparado em termos de moradia. O ordenamento jurídico brasileiro oferece outros mecanismos de proteção, especialmente no que tange à pensão alimentícia e à partilha de bens. No art. 1.694 do Código Civil, por exemplo, está prevista a possibilidade de fixação de pensão alimentícia entre ex-cônjuges, quando um deles não possui meios suficientes para se sustentar.

A pensão alimentícia pode, em alguns casos, incluir o valor necessário para a manutenção de moradia, garantindo que o ex-cônjuge em situação de vulnerabilidade não fique desabrigado após o divórcio. Essa pensão pode ser fixada pelo juiz com base nas necessidades do alimentando e na capacidade financeira do alimentante, considerando as circunstâncias de cada caso. No entanto, essa proteção não confere o direito de permanecer no imóvel que servia como residência familiar, mas sim de obter recursos para garantir uma nova moradia.

Além disso, a partilha de bens decorrente do divórcio é outra forma de proteger o ex-cônjuge, assegurando que ele receba sua parte nos bens comuns do casal, inclusive no imóvel que servia de residência. Dependendo do regime de bens adotado durante o casamento, o imóvel pode ser dividido entre as partes ou vendido para que o valor seja repartido. Em qualquer hipótese, o direito de moradia não se confunde com o direito de propriedade, sendo necessário distinguir essas duas esferas.

Para os casais que adotaram o regime de comunhão parcial de bens, por exemplo, o imóvel adquirido durante o casamento será partilhado igualmente, salvo acordo em contrário. Caso um dos cônjuges deseje permanecer no imóvel, ele deverá compensar financeiramente o outro, respeitando o princípio da igualdade patrimonial entre as partes. Assim, ainda que não haja direito real de habitação para o ex-cônjuge, há formas de garantir que o divórcio não resulte em prejuízos desproporcionais.

Portanto, embora o ex-cônjuge não tenha direito real de habitação após o divórcio, há mecanismos suficientes no Direito Civil brasileiro para assegurar a proteção patrimonial e habitacional, desde que aplicados de maneira justa e equilibrada. A jurisprudência e a doutrina têm trabalhado nesse sentido, buscando soluções que preservem os direitos de ambas as partes.

5. O Papel da Doutrina e Perspectivas Futuras

A doutrina jurídica tem desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento e interpretação dos direitos patrimoniais envolvendo cônjuges e ex-cônjuges. Autores como Maria Helena Diniz, Carlos Roberto Gonçalves e Sílvio de Salvo Venosa têm contribuído para a consolidação do entendimento de que o direito real de habitação é exclusivo do cônjuge sobrevivente no contexto sucessório, e não se estende ao ex-cônjuge em casos de divórcio. Esses autores enfatizam a necessidade de respeitar os limites impostos pela legislação, evitando interpretações que ampliem indevidamente os direitos patrimoniais sem respaldo legal.

No entanto, há discussões na doutrina sobre a necessidade de novas formas de proteção ao ex-cônjuge em situações de vulnerabilidade habitacional após o divórcio. Alguns juristas defendem que o legislador deve criar mecanismos mais específicos de proteção, especialmente para casos em que o divórcio deixa um dos ex-cônjuges sem condições imediatas de prover sua própria moradia. A criação de um novo instituto, que permita a permanência temporária no imóvel familiar até que se encontre uma solução habitacional definitiva, tem sido sugerida por alguns doutrinadores.

Essas discussões refletem a constante evolução do Direito de Família, que precisa se adaptar às mudanças nas estruturas familiares e às novas realidades sociais. O aumento dos divórcios e a crescente desigualdade econômica entre os cônjuges tornam cada vez mais necessárias soluções jurídicas equilibradas e eficazes para lidar com as questões patrimoniais. Embora o direito real de habitação continue sendo um instituto restrito ao cônjuge sobrevivente, é possível que o futuro traga novas perspectivas sobre a proteção habitacional do ex-cônjuge.

Por outro lado, qualquer alteração legislativa nesse sentido deve ser cuidadosamente analisada para não gerar distorções ou injustiças. O direito à moradia é um direito fundamental, mas deve ser equilibrado com o respeito ao direito de propriedade e à autonomia patrimonial das partes após o divórcio. Assim, é fundamental que qualquer mudança na legislação seja feita com base em estudos aprofundados e debates entre os principais juristas da área.

Em conclusão, a doutrina e a jurisprudência têm caminhado no sentido de proteger o cônjuge sobrevivente no contexto sucessório, mas a proteção do ex-cônjuge após o divórcio ainda é uma questão em aberto, que pode gerar mudanças legislativas e jurisprudenciais nos próximos anos.

Conclusão

A impossibilidade de concessão do direito real de habitação ao ex-cônjuge em casos de divórcio é uma questão amplamente debatida na doutrina e consolidada pela jurisprudência recente. O art. 1.831 do Código Civil deixa claro que o direito de habitação é uma proteção destinada exclusivamente ao cônjuge sobrevivente no contexto sucessório, e a decisão do STJ de 2024 reforça esse entendimento, ao negar a extensão desse direito ao ex-cônjuge em situações de dissolução matrimonial. Embora o ex-cônjuge não tenha direito real de habitação, o ordenamento jurídico oferece outros mecanismos de proteção patrimonial, como a pensão alimentícia e a partilha de bens.

No entanto, a questão da proteção habitacional do ex-cônjuge em situação de vulnerabilidade permanece em debate, com juristas sugerindo possíveis mudanças legislativas que ampliem essa proteção. As discussões sobre o tema refletem a necessidade de constante adaptação do Direito de Família às novas realidades sociais, sempre buscando o equilíbrio entre o direito à moradia e a autonomia patrimonial das partes.

Por fim, a evolução legislativa e jurisprudencial sobre a matéria deve ser acompanhada de perto por advogados e estudiosos do Direito, garantindo que as soluções adotadas sejam justas e equilibradas, respeitando os direitos de ambas as partes envolvidas no divórcio.

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Tatiana C. Reis Filagrana

Advogada. Mestre em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Imobiliário e Direito Processual Civil. Professora. Escritora. Membra da Comissão Nacional de Advogados de Direito Notarial e Registral. Mentorada do Professor Marcos Salomão

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