Usucapião e bens do espólio

Usucapião de bens imóveis em contexto sucessório: possibilidades e limites

Introdução

A usucapião é um instituto jurídico que possibilita a aquisição da propriedade através da posse prolongada e sem contestação, sendo uma forma de regularização de situações de fato. Este mecanismo adquire particular relevância no contexto sucessório, especialmente em relação aos bens imóveis pertencentes ao espólio. A possibilidade de um herdeiro ou terceiro adquirir a propriedade de um bem por usucapião, sem a formalização do inventário e sem a intervenção judicial, levanta questões complexas acerca da legitimidade da posse e da proteção dos direitos dos herdeiros. Com o objetivo de refletir sobre a interação entre usucapião e direito sucessório, este artigo busca discutir as possibilidades e os limites da usucapião em cenários envolvendo bens de espólio, principalmente quando o inventário não é aberto de forma célere. A análise de lacunas jurídicas e debates doutrinários também será abordada, destacando a interação entre os prazos de usucapião e a inércia na abertura do inventário.

  1. A Usucapião como Meio de Aquisição de Propriedade

A usucapião é uma das formas de aquisição originária de propriedade, ou seja, não depende de qualquer ato de transmissão do proprietário anterior, mas sim da posse contínua e incontestada de um bem por um período de tempo determinado. No contexto sucessório, a usucapião pode ser vista como uma solução para regularizar a titularidade de bens do espólio, especialmente em situações em que os herdeiros não realizam a partilha dos bens de maneira eficiente. O Código Civil Brasileiro de 2002, em seus artigos 1.238 a 1.244, regula as modalidades de usucapião, sendo as mais comuns a usucapião ordinária e a usucapião extraordinária. Ambas exigem que o possuidor tenha a posse do bem de maneira contínua, mansa e pacífica, mas com diferentes prazos e condições.

No caso dos bens pertencentes ao espólio, a situação se torna mais delicada, pois os bens ainda não foram formalmente transferidos para os herdeiros, sendo geridos pelo inventariante. A posse do espólio, nesse caso, não se traduz diretamente em posse de um único herdeiro ou de um administrador, mas sim de um bem ainda vinculado ao falecido e aguardando a partilha. Isso gera um cenário jurídico onde terceiros, que exercem posse sobre o bem, podem começar a preencher os requisitos para a usucapião, mesmo antes da formalização do inventário.

A usucapião, portanto, pode ser vista como um remédio para situações de inércia dos herdeiros ou dificuldades no processo de inventário. A jurisprudência e a doutrina divergem quanto ao tratamento da posse de bens do espólio, com algumas correntes entendendo que o espólio deve ser considerado um ente jurídico próprio e distinto, enquanto outras entendem que a posse dos bens ainda está ligada ao falecido, dificultando o reconhecimento de um direito de posse regular por terceiros. Assim, surge a questão de saber se um bem do espólio pode ser usucapido antes mesmo de ser transmitido para os herdeiros.

De acordo com a legislação vigente, a usucapião de bens imóveis do espólio poderia ser viabilizada caso o possuidor preencha os requisitos de tempo e qualidade da posse, sem contestação e com a efetiva utilização do imóvel. No entanto, a ausência de regulamentação específica sobre a usucapião de bens pertencentes a um espólio não formalmente partilhado gera uma insegurança jurídica significativa, pois a posse do espólio não possui os mesmos efeitos da posse exercida diretamente pelos herdeiros. Essa insegurança se reflete em diversas interpretações judiciais divergentes sobre o tema, o que exige uma análise mais detalhada da legislação e da jurisprudência.

A ausência de um marco regulatório específico sobre a usucapião no contexto do espólio leva a uma grande quantidade de discussões doutrinárias e decisões judiciais conflitantes. Alguns tribunais defendem a possibilidade de usucapião de bens do espólio, considerando a posse prolongada e sem contestação como suficiente para a aquisição da propriedade, enquanto outros entendem que o processo de usucapião só deve ser viável após a efetiva partilha dos bens no inventário. A definição sobre a usucapião de bens do espólio é, portanto, um ponto crucial no estudo da interação entre usucapião e sucessão.

2. O Papel dos Herdeiros e a Inércia na Abertura do Inventário

O processo de sucessão de bens imóveis depende da abertura do inventário, onde os herdeiros são formalmente identificados e o patrimônio do falecido é partilhado entre eles. No entanto, a abertura do inventário nem sempre ocorre de forma célere. Muitos herdeiros se encontram em situação de conflito, dificuldades financeiras ou até falta de interesse, o que pode atrasar significativamente o processo. Durante esse período de inércia, a posse dos bens do espólio pode ser disputada por terceiros, que buscam adquirir a propriedade por meio da usucapião.

A inércia na abertura do inventário tem como consequência a manutenção da posse dos bens pelo inventariante, sem que haja uma definição clara sobre a titularidade do patrimônio. Essa situação de indefinição pode favorecer a posse de terceiros, principalmente em áreas onde a fiscalização e a regularização fundiária são mais frágeis. Quando o bem é utilizado de forma pacífica e ininterrupta, atendendo aos requisitos de tempo e posse, pode ocorrer o preenchimento das condições necessárias para a usucapião, sem que os herdeiros tenham a oportunidade de contestar ou regularizar a situação. 

No entanto, os herdeiros também podem contestar a usucapião de bens pertencentes ao espólio, argumentando que a posse exercida por terceiros não deve ser considerada legítima, pois o bem ainda pertence ao falecido. A jurisprudência brasileira ainda se divide sobre o tema, com decisões que favorecem a continuidade da posse do espólio até que o inventário seja aberto, enquanto outras entendem que a ausência de partilha permite que terceiros adquiram a propriedade por usucapião. Essa divisão é reflexo da lacuna legislativa que não aborda diretamente a usucapião de bens do espólio.

É importante destacar que, mesmo que os herdeiros não abram o inventário, o direito de posse do espólio não se extingue. No entanto, ao não tomar as providências necessárias para a regularização da posse, os herdeiros correm o risco de ver o bem sendo usucapido por terceiros. Esse risco é ainda maior em casos de imóveis desocupados ou abandonados, onde a posse por terceiros pode ser mais facilmente reconhecida. A inércia dos herdeiros, portanto, pode resultar em um enfraquecimento do direito sucessório, abrindo espaço para que terceiros adquiram a propriedade.

A falta de um prazo claro e uniforme para a abertura do inventário torna o processo sucessório ainda mais vulnerável a questões como a usucapião. Essa fragilidade no direito sucessório evidencia a necessidade de reformas legislativas que estabeleçam prazos mais rígidos para a realização do inventário e que tratem de forma mais clara a possibilidade de usucapião em contextos sucessórios. A criação de um marco temporal para a partilha de bens poderia diminuir as incertezas e evitar que os herdeiros percam bens devido à inércia no processo de inventário.

3. Interação entre os Prazos de Usucapião e a Abertura do Inventário

Os prazos de usucapião variam conforme o tipo de posse e a modalidade de usucapião, sendo fundamental compreender a interação entre esses prazos e o processo de abertura do inventário. No caso da usucapião ordinária, o prazo é de 10 anos, podendo ser reduzido para 5 anos se o possuidor tiver estabelecido sua residência no imóvel e nele tiver realizado investimentos ou melhorias. Já a usucapião extraordinária exige 15 anos de posse contínua, sem a necessidade de justo título ou boa-fé.

No contexto de bens do espólio, a contagem do prazo de usucapião pode ser prejudicada pela indefinição quanto à titularidade da posse. Quando o inventário não é aberto, os herdeiros não podem formalmente exercer o direito de posse sobre os bens, o que dificulta a análise da continuidade da posse. A contagem do prazo para a usucapião de bens do espólio, portanto, fica comprometida, pois não há uma clareza sobre a titularidade do bem durante o período em que o inventário não é realizado.

Em muitos casos, a contagem do prazo de usucapião é interrompida quando há disputa judicial sobre a posse do bem. No caso de um espólio, no entanto, essa disputa se torna mais difícil de ser resolvida, pois a ausência de um administrador único dificulta a contestação de terceiros. Assim, a inércia na abertura do inventário cria um cenário em que a posse prolongada e ininterrupta pode ser suficiente para a aquisição da propriedade por usucapião, sem que os herdeiros possam reagir de forma eficaz.

A jurisprudência tem abordado a questão de forma divergente, com alguns tribunais considerando que a usucapião de bens de espólio não deve ser permitida enquanto o inventário não for concluído, enquanto outros aceitam que, diante da posse mansa e pacífica, o prazo de usucapião deve ser contado normalmente. A definição sobre esse ponto é essencial para estabelecer uma interpretação uniforme do Código Civil e garantir maior segurança jurídica para todos os envolvidos.

A interação entre os prazos de usucapião e a abertura do inventário reforça a necessidade de uma maior clareza legislativa sobre o tema. A criação de normas mais detalhadas sobre os efeitos da inércia na abertura do inventário e os direitos de posse dos herdeiros poderia evitar a perda de bens por usucapião, além de promover uma maior eficiência no processo sucessório. A regulamentação específica sobre o início da contagem do prazo de usucapião no contexto sucessório é, portanto, uma questão urgente para a segurança jurídica no país.

4. Lacunas Jurídicas e Debates Doutrinários

A principal lacuna jurídica no contexto da usucapião de bens do espólio é a ausência de regulamentação clara sobre o momento em que o prazo de usucapião começa a ser contado. O Código Civil não aborda diretamente a usucapião de bens que ainda pertencem ao espólio, o que gera interpretações divergentes entre os tribunais e os doutrinadores. Alguns autores defendem que a posse do espólio é uma posse indireta e que a usucapião só pode ser reconhecida após a partilha formal dos bens, enquanto outros consideram que a posse de bens do espólio pode ser considerada válida para fins de usucapião.

A ausência de uma legislação específica cria um ambiente de insegurança jurídica, em que terceiros podem adquirir propriedades pertencentes ao espólio sem que os herdeiros possam se manifestar. A doutrina brasileira ainda está dividida quanto à forma como o espólio deve ser tratado no processo de usucapião, o que dificulta a aplicação uniforme da legislação. Alguns especialistas argumentam que a posse exercida pelo espólio deve ser considerada uma posse precária, pois não há uma titularidade clara até que o inventário seja concluído.

Além disso, há um debate importante sobre a possibilidade de usucapião em casos de imóvel abandonado ou desocupado, que podem estar sob a posse do espólio. Enquanto alguns doutrinadores sustentam que a usucapião é uma forma legítima de regularização da propriedade, outros alertam para os riscos de usucapião abusiva, onde terceiros podem se aproveitar da inércia dos herdeiros para adquirir bens de maneira ilícita. O equilíbrio entre os direitos dos herdeiros e os direitos de terceiros é, portanto, um tema central no debate sobre a usucapião de bens do espólio.

A jurisprudência também tem se mostrado incerta, com decisões que variam de acordo com o tribunal. A possibilidade de usucapião em contextos sucessórios não é uniformemente aceita, e a falta de uma definição clara sobre o que constitui “posse mansa e pacífica” em relação ao espólio contribui para a dificuldade de aplicar a lei de forma consistente. A divergência entre as instâncias judiciais reflete a necessidade de um marco normativo que aborde essas questões de maneira mais específica.

Diante dessa lacuna legislativa, seria necessário que o legislador revisasse a questão da usucapião no contexto sucessório, fornecendo uma base normativa mais clara e adequada às novas realidades sociais e jurídicas. A criação de uma legislação específica sobre o tema evitaria que os bens do espólio fossem usucapidos injustamente, além de proporcionar uma maior segurança jurídica tanto para os herdeiros quanto para os terceiros envolvidos.

5. Possibilidades de Reforma Legislativa e Soluções para o Problema

A complexidade da usucapião no contexto sucessório exige uma análise crítica da legislação vigente e uma reflexão sobre possíveis reformas. Uma das soluções seria estabelecer prazos fixos para a abertura do inventário, de forma a evitar que os herdeiros se beneficiem da inércia e, assim, criem um ambiente propício para a usucapião. Além disso, a criação de regras claras para a contagem do prazo de usucapião em situações envolvendo bens do espólio traria mais previsibilidade e segurança jurídica para todos os envolvidos.

A reforma também poderia incluir a definição da posse do espólio, determinando quando ela seria considerada válida para fins de usucapião e quais os efeitos da inércia dos herdeiros na titularidade do bem. Ao estabelecer prazos claros e regras específicas, o legislador poderia garantir que o direito sucessório não fosse prejudicado por questões processuais, promovendo uma maior proteção aos herdeiros e à regularização fundiária.

Além disso, a criação de um marco temporal para a abertura do inventário poderia auxiliar na resolução de disputas envolvendo imóveis abandonados ou desocupados. Isso permitiria que os bens fossem administrados de maneira eficiente e reduzisse o risco de usucapião indevido. A regulamentação das relações entre os herdeiros e terceiros no que tange à usucapião também ajudaria a prevenir abusos e promoveria a paz social no contexto sucessório.

A reforma legislativa não se limitando apenas à usucapião, mas tratando de todo o processo sucessório, poderia também garantir que os direitos dos herdeiros sejam respeitados sem a perda de bens. Por fim, a discussão sobre a usucapião no contexto sucessório deve ser aprofundada e debatida em instâncias legislativas, de modo a sanar as lacunas jurídicas que ainda existem e garantir uma aplicação mais justa da lei.

Conclusão

A usucapião de bens imóveis no contexto sucessório representa um desafio significativo, pois envolve a intersecção de direitos de posse, titularidade e os direitos dos herdeiros. A inércia na abertura do inventário cria um terreno fértil para que terceiros adquiram propriedades por usucapião, colocando em risco os direitos sucessórios. A falta de regulamentação específica e a divisão de entendimentos entre doutrinadores e tribunais dificultam a aplicação do direito de forma uniforme, tornando necessário um esforço legislativo para estabelecer normas claras que tratem da usucapião em situações sucessórias. A revisão da legislação e a introdução de regras mais precisas contribuirão para a segurança jurídica no processo sucessório e para a proteção dos direitos de herdeiros e terceiros.

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Tatiana C. Reis Filagrana

Advogada. Mestre em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Imobiliário e Direito Processual Civil. Professora. Escritora. Membra da Comissão Nacional de Advogados de Direito Notarial e Registral. Coordenadora da Comissão de D da Criança e Adolescente – OAB/Blumenau. Mentorada do Professor Marcos Salomão

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