organizar capital e preservar riqueza

Antes da holding: a longa jornada da proteção patrimonial

Introdução

Muito antes de as holdings se tornarem sinônimo de planejamento patrimonial, já havia um problema sendo enfrentado por comerciantes, navegadores e empresários de diferentes épocas: como organizar capital, compartilhar risco e preservar riqueza. As holdings, tal como conhecemos, só surgiriam no século XIX. Mas sua lógica já era pressentida por estruturas jurídicas rudimentares surgidas ainda na transição da Idade Média para a modernidade.

Os primeiros passos: comércio, risco e contratos

No século XV, o comércio marítimo florescia em cidades como Veneza, Gênova e Bruges. As viagens eram longas e perigosas — e os custos, altos. Foi nesse cenário que surgiram contratos como a comenda (commenda ou commendatio): um acordo entre um investidor (comendador), que fornecia os recursos, e um comerciante ou navegador (comendatário), que utilizava os recursos para conduzir expedições comerciais, assumindo o risco e buscando o lucro.

Esse modelo já distinguia capital de atividade operacional. Por isso, é considerado um dos ancestrais diretos das sociedades modernas. Segundo Braudel (1996) e Polanyi (2000), ali já estava o germe do que futuramente seria a separação entre propriedade e risco.

A comendafoi uma das primeiras formas de dissociação entre propriedade do capital e gestão da atividade, teve origem no mediterrâneo, por volta do século XI, e serviu como embrião para a ideia moderna de sócio investidor × sócio gestor.

Outros contratos similares na prática mercantil medieval e renascentista também buscavam separar capital e risco, ainda que com variações regionais e jurídicas. A societas maris, comum no sul da França, envolvia múltiplos investidores e navegadores em expedições conjuntas. A collegantia, típica de Gênova, era uma versão mais flexível da commenda, permitindo ajustes na divisão de lucros e no tempo de duração. Já a societas terrae transferia esse modelo de associação para operações em terra firme. Em contextos familiares e de longa duração, destacava-se a fraterna ou compagnia, que unia sócios com vínculos estáveis e recíprocos — modelo explorado por grandes famílias mercantis como os Médici e os Fugger. Esses contratos, apesar das diferenças, tinham em comum o esforço de organizar juridicamente relações econômicas complexas, antecipando a lógica das sociedades modernas.

O salto das companhias por ações

Com o tempo, o capital necessário para financiar grandes expedições ultrapassou o que uma única pessoa podia oferecer. Foi aí que surgiram as primeiras companhias por ações, como a Companhia Holandesa das Índias Orientais (1602) e a Companhia das Índias Orientais Britânica (1600).

Essas empresas introduziram três ideias que mudariam o mundo dos negócios:

  1. Personalidade jurídica própria;
  2. Responsabilidade limitada dos investidores;
  3. Divisão do capital em ações transferíveis.

Esses pilares — hoje considerados banais — eram revolucionários. Eles permitiram a concentração de capital e a diluição do risco em uma escala nunca antes vista.

A Revolução Industrial e o gargalo do capital

No século XIX, a máquina a vapor transformou o mundo. A produção se mecanizou, e a capacidade humana de gerar bens multiplicou-se. O obstáculo deixou de ser a força de trabalho ou a matéria-prima — passou a ser o dinheiro.

A produção em escala exigia grandes somas para construir fábricas, comprar equipamentos e manter estoques. E os bancos, ainda conservadores, nem sempre ofereciam crédito nas condições desejadas.

Como mostram autores como Landes (1998) e Schumpeter (1961), os empresários buscaram fontes alternativas de financiamento — e começaram a reorganizar suas empresas em estruturas mais complexas, que facilitassem o reinvestimento interno.

O nascimento da holding company

É nesse ambiente de inovação e escassez de crédito que surge a holding company. A lógica era simples: em vez de abrir várias empresas separadas, criava-se uma empresa-mãe, que detinha o controle das demais.

Essa estrutura:

  • Facilitava a expansão sem depender dos bancos;
  • Permitia reaproveitar lucros de empresas controladas para financiar novas iniciativas;
  • E concentrava o controle estratégico em uma única entidade.

Nos EUA, John D. Rockefeller popularizou o modelo ao criar a Standard Oil Trust, que transformou a indústria do petróleo e consolidou o uso da holding como ferramenta de comando e crescimento.

Um efeito colateral poderoso: proteção

Embora não fosse esse o objetivo inicial, logo se percebeu que a holding oferecia uma proteção indireta: ela não operava diretamente e, por isso, não era atingida pelos riscos trabalhistas, ambientais ou comerciais das empresas controladas.

Se uma subsidiária quebrasse, a holding — e o patrimônio nela reunido — continuava preservada. Esse foi o primeiro passo para algo que só muito mais tarde se consolidaria como ideia central: o patrimônio precisa estar juridicamente protegido do risco.

Conclusão

A holding nasceu de uma necessidade empresarial, não de um planejamento familiar. Mas sua origem revela algo essencial: Desde o início, as estruturas jurídicas mais duradouras são aquelas que permitem separar o que você tem do que pode acontecer.

Na próxima semana, voltaremos ao fim do século XIX para descobrir como algumas famílias transformaram a holding em um império — e dominaram mercados inteiros com uma estrutura invisível, porém poderosa.

Referências

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  4. GILLESPIE, Charles Coulston. A cultura científica no Ocidente: da Idade Média à Revolução Científica. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
  5. GREIF, Avner. Institutions and the path to the modern economy: lessons from medieval trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
  6. HOBSBAWM, Eric J. Indústria e império: uma história econômica da Grã-Bretanha desde 1750. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
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  9. MICKLETHWAIT, John; WOOLDRIDGE, Adrian. A empresa: uma história curta da ideia revolucionária. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
  10. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. Disponível em: https://lburlamaqui.com.br/wp-content/uploads/2023/03/06_Polanyi-A_grande_transformacao.pdf. Acesso em: 7 maio 2025.
  11. REYNOLDS, Susan. Fiefs and vassals: the medieval evidence reinterpreted. Oxford: Clarendon Press, 1994.
  12. SPUFFORD, Peter. Money and its use in medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
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Piraju Borowski Mendes é sócio fundador da PBCA Planejamento, que tem a missão de elevar a conscientização e a prática do planejamento patrimonial entre as famílias brasileiras. Coronel da reserva do Exército Brasileiro e membro do Time Holding Brasil, exerce a atividade de consultoria aplicada ao planejamento patrimonial das famílias. É Doutor em Ciências Militares, por notório saber; Especialista em Direito Imobiliário Extrajudicial e Especializando em Direito de Família e Sucessões Extrajudicial. Dedica-se ao estudo e elaboração de holdings familiares desde 2021, seguindo a metodologia de planejamento patrimonial que emprega como ferramenta o sistema de holding familiar.

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