ANÁLISE DE RISCO NA COMPRA E VENDA DE IMÓVEL E A FRAUDE À EXECUÇÃO

ANÁLISE DE RISCO NA COMPRA E VENDA DE IMÓVEL E A FRAUDE À EXECUÇÃO

Introdução

No mercado imobiliário, a segurança jurídica das transações é fundamental, especialmente na compra e venda de imóveis. Um dos maiores riscos nessas transações é a ocorrência da fraude à execução, que pode tornar ineficaz a alienação do bem em relação a credores do vendedor. Fraude à execução ocorre quando o devedor, já demandado judicialmente ou em vias de execução, aliena ou onera bens de seu patrimônio de forma a frustrar a satisfação do credor. Verificada a fraude à execução, a alienação do imóvel não produzirá efeitos contra o credor exequente, podendo este promover a penhora e expropriação do bem, ainda que tenha sido transferido a terceiro.

A identificação da fraude à execução em operações imobiliárias exige análise cuidadosa de vários fatores: a situação patrimonial do devedor, a existência de ações judiciais ou execuções contra ele, a diligência do adquirente em verificar tais pendências, e as circunstâncias específicas da transação (por exemplo, vendas a parentes próximos ou por valores subestimados).

Conceito de fraude à execução e fundamentos legais

O Código de Processo Civil de 2015 positivou as hipóteses de fraude à execução no artigo 792, elencando situações em que a alienação ou oneração de bens do devedor será considerada fraudulenta: i) quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; ii) quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 do CPC ; iii) quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; iv) quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência; v) nos demais casos expressos em lei (como os casos de fraude à execução fiscal, regidos pelo Código Tributário Nacional). Em síntese, a lei processual busca conciliar, de um lado, a proteção aos credores e à efetividade das decisões judiciais e, de outro, a estabilidade das relações negociais e a proteção de adquirentes de boa-fé.

No âmbito jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimentos por meio de súmulas e precedentes. Merece menção a Súmula 375 do STJ, segundo a qual “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Essa súmula, editada antes do CPC/2015, sintetizou a ideia de que, para se declarar a fraude à execução, ou deve haver registro público de constrição (tornando o adquirente automaticamente ciente da disputa), ou, na ausência de tal registro, deve-se comprovar que o terceiro adquirente agiu de má-fé (isto é, tinha conhecimento da demanda judicial capaz de levar o alienante à insolvência e, mesmo assim, realizou o negócio). Em outras palavras, presume-se a boa-fé do comprador se não houver publicidade da execução pendente; tal presunção só cede se houver prova de que ele tinha ciência da situação litigiosa.

Alterações trazidas pela Lei 14.382/2022

A Lei 14.382/2022 trouxe importantes avanços para a segurança jurídica nas transações imobiliárias, enfatizando o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel e dispensando algumas certidões forenses ou de distribuidores judiciais na lavratura das escrituras públicas.  A Lei renumera o parágrafo único do artigo 54 da Lei 13.097/2015[1], transformando-o em parágrafo primeiro, e traz uma inovação que é o parágrafo segundo. De acordo com a dicção desse último parágrafo, para que reste configurada a boa-fé do adquirente, ele não precisará obter outras certidões, além daquelas previstas no § 2º do art. 1º da Lei 7.433/1985, a qual dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas. Assim, está dispensada, na lavratura da escritura pública, a apresentação das certidões forenses e de distribuidores judiciais.

Apesar desse avanço significativo, a Lei não alterou o inciso IV do artigo 792 do CPC, o qual estabelece que será considerada fraude à execução quando, ao tempo da alienação ou da oneração, já tramitava contra o vendedor ação capaz de levá-lo à insolvência. Essa disposição mantém um alerta essencial para quem adquire imóveis: a análise cuidadosa da situação patrimonial e jurídica do alienante continua imprescindível. A simplificação trazida pela Lei 14.382/2022 não elimina completamente os riscos associados à compra de imóveis. O adquirente deve permanecer diligente, obtendo certidões e realizando análises aprofundadas sempre que houver indícios de que o vendedor possa estar em situação de insolvência.

Dessa forma, a Lei 14.382/2022, embora privilegie a concentração dos atos na matrícula do imóvel, reforça a necessidade da realização de uma due diligence imobiliária cuidadosa, especialmente diante da Súmula 375 do STJ e dos recentes entendimentos jurisprudenciais sobre fraude à execução. Em resumo, a inovação legislativa simplifica procedimentos, mas não dispensa integralmente as cautelas que sempre protegeram o adquirente diligente contra os riscos jurídicos inerentes à transação imobiliária.

Boa-fé do terceiro adquirente, diligência e negligência: o dever de cautela na compra de imóveis

A análise da fraude à execução costuma recair sobre a postura do terceiro adquirente de boa-fé. O direito brasileiro preza pela proteção dos adquirentes que ajam com boa-fé e tomem as cautelas normais nas transações. Por outro lado, não tolera a indiferença ou negligência culposa que contribua para o ilícito. Assim, um tema central é: qual o grau de diligência exigível do comprador de um imóvel para que ele seja considerado de boa-fé e não sofra as consequências de uma possível fraude à execução?

A boa-fé do adquirente, em regra, é presumida. No entanto, essa presunção pode ser elidida por prova em contrário, ou mesmo por circunstâncias que revelem que o comprador “tinha fundadas razões para saber” da existência de demanda contra o vendedor. Os procedimentos de praxe para a segurança de uma compra imobiliária envolvem a obtenção de diversas certidões negativas em nome do vendedor (distribuidores cíveis, execuções fiscais, trabalhistas, certidões dos cartórios de protesto, etc.), bem como a verificação da matrícula do imóvel para identificar eventuais penhoras, ações reais ou restrições. Essas diligências compõem o due diligence mínimo recomendável.

No artigo Fraude à execução: o Enunciado 375 da Súmula/STJ e o projeto do novo Código de Processo Civil, a E. Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi leciona que: “a fraude de execução consiste na alienação fraudulenta de bens do devedor na pendência de um processo capaz de reduzi-lo à insolvência, sem manter a propriedade de bens suficientes para adimplir o débito que possui com o credor”[2].

Nesse artigo, a DD. Ministra, defende que a fraude à execução não alcança apenas a esfera de interesses particulares dos credores, pois esse tipo de fraude atenta também contra o Estado, tendo em vista que interfere diretamente na efetividade da prestação jurisdicional, frustrando o resultado útil do processo, e maculando o decoro e o respeito que estão a merecer o Poder Judiciário[3].

A fraude à execução resta caracterizada pela: a) pendência de demanda contra o devedor; b) a frustração do meio executório; e c) a ciência do terceiro adquirente. O registro da penhora na matrícula ou a averbação de que pende ação executória gera presunção absoluta do conhecimento por terceiros da execução, caracterizando a má-fé do adquirente, ou seja, para aquele que venha a adquirir tal bem não possa alegar desconhecimento.

No entanto, a inexistência de registro implica presunção relativa de má-fé do terceiro adquirente, posto que o comprador deve ser diligente quando da compra de um imóvel. A Ministra Fátima Nancy Andrighi defende a interpretação dos dispositivos que tratam da fraude à execução no sentido de se imputar ao terceiro adquirente o ônus da prova da não ocorrência dos pressupostos da fraude de execução[4].

Ademais, diante do valor envolvido na transação, é dever do adquirente de bem imóvel acautelar-se obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais para constatar a existência de ações contra o vendedor, posto que essas pesquisas de processos judiciais estão ao alcance de qualquer pessoa. Não há como alegar o desconhecimento do processo que causava a insolvência do alienante. Seu descumprimento viola a boa-fé objetiva, a qual se impõe em toda relação negocial nos termos do artigo 422 do CC/2002, por contrariar padrão de conduta mínima exigível na celebração dessa espécie de avença[5].

Na obra Direito Imobiliário – Teoria e Prática[6], escrita por Luiz Antonio Scavone Junior, no Livro III, capítulo 1 – Cuidados na aquisição de imóveis, o autor relaciona todos os documentos que o comprador deve exigir do vendedor para se verificar a sua idoneidade. Entre os documentos relacionados encontram-se as certidões dos cartórios distribuidores judiciais (Justiça Estadual, Justiça do Trabalho e Justiça Federal). O autor refere que toda cautela é necessária, posto que na análise desses documentos podem ser identificadas a existência de dívidas:

“O principal problema é a possibilidade de fraude contra credores e fraude à execução.

Isso ocorre quando o vendedor vende seus bens já tendo contra si uma ação ou um crédito que o torna insolvente, ou seja, incapaz de pagar suas dívidas com os bens remanescentes do seu patrimônio.”

Continua o autor, Luiz Antonio Scavone Junior,lecionando que se a compra do imóvel se deu ante a existência de apontamentos nas certidões, o comprador é considerado de má-fé e poderá, perder o dinheiro aplicado no negócio em razão da fraude contra credores[7]. E quando a insolvência é evidente, pois as certidões indicam desabono, a compra não deve ser realizada. Se comprar mesmo diante de certidões positivas que indiquem dívidas, o comprador poderá ser considerado de má-fé. Nesse caso será cúmplice da fraude, evidenciando, assim, o elemento “consilium fraudis”[8].

Em análise à Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015, que trata da concentração dos atos na matrícula, na citada obra, leciona Luiz Antonio Scavone Junior, a impossibilidade de se dispensar as certidões em nome do vendedor, posto que a referida Lei apenas ratifica aquilo que há muito entende a Súmula 375 do STJ. Na concepção do autor, houve um alarde, de que, a partir da sua edição, a única diligência que o comprador deveria se atentar era análise a matrícula[9].

Equivocado, portanto, o entendimento de que o comprador poderia dispensar a análise da vida pregressa do vendedor e antecessor. A par de o artigo 54 da Lei 13.097/2015 estabelecer a eficácia dos negócios jurídicos imobiliários sem que haja qualquer constrição ou gravame na matrícula, essa presunção já decorria do sistema consolidado na Súmula 375 do STJ, e é relativa, ou seja, se houver registro na matrícula ou averbação de gravame, a alienação de bens gera presunção absoluta de fraude à execução[10].

Continua o autor[11]:

“Todavia, se não houver o registro, não significa, automaticamente, que o adquirente está livre tanto da fraude contra credores quanto da fraude à execução.

Não havendo registro de qualquer pendência, a conclusão evidente, evidentíssima, aliás, é que limita em favor do adquirente presunção relativa de boa-fé, de tal sorte que o ônus da prova de conhecimento do gravame ou constrição se transfere para o credor ou prejudicado (com grifos no original).

Conclui-se que se presume, de forma relativa, a boa-fé do adquirente e a higidez da transferência, modificação ou extinção do direito sobre o imóvel se não houver registro ou averbação do gravame ou constrição, mas não significa que não tenha havido fraude contra credores ou fraude à execução.

(…)

Contudo – e aí está a confusão de muitos, não significa que, não havendo o registro ou averbação de gravames ou constrições na matrícula, o sistema prestigie o negócio e beneficie o terceiro que haja procedido de má-fé, tornando letra morta o instituto da fraude contra credores, à execução e, bem assim, o art. 792, inc. IV do Código de Processo Civil.

Seria até absurdo pensar isso.

(…)

Portanto, as certidões devem continuar sendo extraídas.

Sem extrair as certidões de praxe, a má-fé aflora e, a par de não haver qualquer constrição na matrícula, o negócio jurídico será ineficaz perante ação ou execução já aforada, que tenham o condão de reduzir o alienante à insolvência; poderá ser anulada em razão de fraude contra credores no caso de dívidas ainda não ajuizadas por meio da ação pauliana ou revocatória; ou será anulada nos casos de falsificação de documentos do titular do imóvel.

Pensar diferente seria premiar a má-fé, o que, definitivamente, não decorre do sistema.”

Quanto à demonstração da má-fé do adquirente a ser feita pelo credor, não restou em momento algum mencionado qual seria essa prova. Essa prova poderia consistir na constatação que decorre da ausência da obtenção das certidões, através das quais se poderia verificar facilmente a existência da dívida ou a insolvência do alienante.

Os autores Ministra Nancy Andrighi e Daniel Bittencourt Guariento tratam sobre a distribuição dinâmica do ônus da produção da prova, que tem por fundamento a probatio diabolica, a prova difícil ou de impossível realização para uma das partes. Com base na teoria da distribuição dinâmica, o ônus da prova recai sobre quem tiver melhores condições de produzi-la, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso, levando-se em consideração, sobretudo, os princípios da isonomia (arts. 5º, caput, da CF, e 125, I, do CPC/2015), do devido processo legal (art. 5º, inc. XIV, da CF/1988), da solidariedade (art. 339, do CPC/1973 e art. 378, do CPC/2015) e da lealdade e boa-fé processual (art. 14, II, do CPC/1973 e art. 5º, II, do CPC/2015), bem como os poderes instrutórios do Juiz (art. 355, do CPC/1973 e art. 396, do CPC/2015)[12].

Nesse sentido, examinaremos, a seguir, recente jurisprudência a respeito de duas situações específicas e relevantes: a) a doação ou alienação de bens do devedor a parentes próximos (ascendentes ou descendentes) em contexto de possível fraude; b) a responsabilidade do terceiro adquirente, especialmente quanto à sua diligência ou negligência na compra de bem litigioso.

Uma modalidade recorrente de fraude à execução é a transferência patrimonial no âmbito familiar, por exemplo, doações de bens de devedores para seus filhos ou cônjuges, frequentemente com intuito de blindagem patrimonial. Nesses casos, o devedor tenta esvaziar seu patrimônio, mantendo os bens “em família” para se furtar ao alcance de credores. Historicamente, decisões judiciais oscilavam quanto à necessidade de registro prévio da penhora ou da execução na matrícula do imóvel para caracterizar fraude nesse contexto familiar. A Súmula 375 do STJ, como visto, exigiria, em tese, a prova da má-fé do beneficiário (terceiro adquirente) se não houvesse penhora averbada. O impasse era: seria necessário provar que, por exemplo, o filho que recebeu o imóvel em doação sabia das dívidas do pai? Ou a própria circunstância de uma doação realizada em contexto de insolvência já evidenciaria a intenção fraudulenta do devedor, dispensando maiores indagações sobre o conhecimento do donatário?

Esse entendimento foi recentemente reforçado e uniformizado no âmbito do STJ. Em fevereiro de 2025, no julgamento dos Embargos de Divergência em REsp nº 1.896.456/SP, a Corte Especial do STJ consolidou a posição de que a doação de imóvel realizada entre ascendente e descendentes, em contexto de insolvência e evidente blindagem patrimonial, configura fraude à execução, independentemente da ausência de penhora registrada.

Nesse caso paradigmático, discutia-se justamente a divergência entre turmas: enquanto uma das Turmas do STJ (3ª Turma) seguia estritamente a Súmula 375 e exigia registro da penhora na matrícula para reconhecer a fraude, outra Turma (4ª Turma) já vinha decidindo que, em se tratando de doação no seio familiar com intuito de fraudar credores, o registro prévio poderia ser dispensado diante da configuração de má-fé do devedor. Os Embargos de Divergência alinharam a jurisprudência da Corte, prevalecendo o entendimento de que a transferência patrimonial “intrafamiliar” caracteriza fraude à execução mesmo sem penhora averbada, dada a inequívoca intenção de prejudicar credores.

Fora dos casos de evidente conluio familiar, outros problemas surgem quando o adquirente deixa de efetuar essas verificações ou as realiza de forma incompleta, ou ainda quando ignora indícios claros de problemas. Um caso ilustrativo é o julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) em 2024 (Apelação Cível nº 0011190-75.2019.8.16.0194). Nessa decisão, a 16ª Câmara Cível do TJPR reconheceu a fraude à execução na venda de um imóvel, afastando a boa-fé dos adquirentes por entender que eles agiram com negligência. Constatou-se que os compradores não investigaram adequadamente a situação jurídica do bem e do vendedor – havia uma certidão positiva de ações contra o vendedor, que eles optaram por ignorar, além de outras inconsistências no negócio (como discrepâncias de valores e demora em registrar a escritura).

Nesse julgamento ficou consignado que, a mera ausência de registro de ação ou penhora na matrícula não isentou do dever de cautela. Ficou evidenciado que, se tivessem agido com a diligência esperada, teriam identificado o risco da execução pendente contra o vendedor. Ao negligenciar essas providências, assumiram o risco e perderam a proteção legal conferida ao adquirente de boa-fé. Em outras palavras, a boa-fé não socorre quem facilmente poderia – mediante as verificações ordinárias – ter conhecimento do litígio e dos riscos, e mesmo assim prosseguiu com o negócio.

Esse entendimento coaduna-se com a orientação do STJ contida na Súmula 375 (necessidade de prova de má-fé do terceiro quando não há penhora registrada). A chamada “prova de má-fé” pode derivar não apenas de evidências diretas (como o comprador confessar que sabia da execução, ou ter parentesco/aliança com o devedor), mas também de uma má-fé inferida objetivamente pela falta das cautelas básicas. Afinal, o direito civil contemporâneo valoriza a boa-fé objetiva, impondo deveres de conduta leal e diligente às partes. Negociações realizadas de modo temerário ou com indiferença aos riscos objetivos dificilmente qualificam o adquirente como terceiro de boa-fé merecedor de tutela.

Fraude à execução fiscal (execuções tributárias)

Abordamos separadamente a fraude à execução no campo tributário, pois possui regramento próprio e entendimento jurisprudencial consolidado específico. A legislação tributária, notadamente o Código Tributário Nacional (CTN), estabelece norma específica para coibir a alienação de bens pelo devedor tributário em prejuízo do Fisco. O artigo 185 do CTN, em sua redação dada pela Lei Complementar nº 118/2005, dispõe que se presume fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas do devedor após a inscrição do crédito tributário em dívida ativa, salvo se mantidos bens suficientes para quitar a dívida, conforme disposição do parágrafo único do mencionado artigo. Em outras palavras, a partir do momento em que o débito tributário é regularmente inscrito como dívida ativa, o contribuinte não pode mais se desfazer de seu patrimônio de modo a ficar insolvente em relação a essa dívida; se o fizer, a lei presume fraude à execução.

Esse regime é mais rigoroso do que o da esfera cível, pois independe de registro de penhora ou mesmo de citação em execução. Antes da LC 118/2005, discutia-se se a fraude à execução fiscal somente se configuraria após a citação do devedor na execução (conforme antiga redação do art. 185 do CTN). Contudo, com a alteração legislativa, consolidou-se o entendimento de que basta a inscrição em dívida ativa para que haja a presunção legal de fraude, caso haja alienação patrimonial sem reserva de bens para pagamento.

O STJ, interpretando essa norma, ao julgar o REsp 1.141.990/PR (Tema 290), fixou tese no sentido de que após a vigência da LC 118/2005, a presunção de fraude na alienação de bens do devedor tributário tornou-se absoluta, dispensando investigação sobre boa-fé do terceiro adquirente. A presunção absoluta de fraude se aplica mesmo em caso de alienações sucessivas do bem. Ou seja, ainda que o imóvel tenha passado por vários compradores depois da alienação fraudulenta inicial, todos os negócios subsequentes carregam o vício em relação ao Fisco, não havendo como elidir a fraude pelo simples trânsito entre terceiros. Importante frisar que a Súmula 375 do STJ não se aplica à execução fiscal, ou seja, não é exigível registro prévio de penhora nem se admite a escusa de boa-fé do terceiro – bastando a alienação posterior à inscrição do débito para caracterizar a fraude.

Em síntese, na fraude à execução fiscal vigora uma lógica de presunção legal absoluta, ao passo que na fraude à execução “comum” vigora, em geral, uma presunção relativa de boa-fé do terceiro (que pode ser afastada por prova em contrário ou circunstâncias específicas). Essa diferença de tratamento tem base tanto na lei quanto na política jurídica: protege-se com mais rigor o crédito tributário, por envolver verbas públicas, e parte-se do pressuposto de que a inscrição em dívida ativa equivale, em termos de notoriedade, a uma verdadeira “publicidade legal” da existência do débito (ainda que não divulgada em cartório de imóveis). Assim, cabe aos potenciais compradores terem ciência dessa regra do jogo.

Conclusão

A evolução jurisprudencial recente acerca da fraude à execução demonstra um movimento de fortalecimento dos mecanismos de tutela dos credores e da efetividade das execuções, sem descurar totalmente da proteção a terceiros de boa-fé, mas exigindo destes um patamar maior de atenção e diligência.

Do ponto de vista prático e preventivo, portanto, o adquirente deve adotar uma postura proativa de verificação. Por isso, é importante fazer um bom dossiê, com certidões negativas, certidões narratórias, inclusive, informando na competente escritura todas as certidões que foram avaliadas, e, em caso de existência de ações, a análise de ativo patrimonial para identificar se o vendedor permanecerá solvente, apesar de estar se desfazendo desse bem. A contratação de assessoria jurídica especializada antes da compra é altamente recomendável, justamente para evitar a situação dramática de ver um imóvel comprado ser atingido por dívida alheia.

No entanto, o fato de existirem ações contra o vendedor, não quer dizer que vai impossibilitar a alienação desse imóvel, pois uma série de soluções poderá ser apresentar aos contratantes, como depositar em juízo os valores correspondentes aos débitos existentes, condicionar o pagamento do preço à apresentação da quitação, fazer um acordo com os credores para quitar as dívidas, entre outros.

O tema tratado não se esgota nesse curto texto. No entanto, a mensagem principal que se traz aqui é que, a análise de risco, a chamada due diligence imobiliária, é fundamental para trazer maior segurança jurídica para o adquirente de imóveis, especialmente, quando existe(m) ação(ões) proposta(s) contra o alienante, que possa(m) vir a resultar numa eventual insolvência da parte vendedora perante seu(s) credor(res), pois, como já se disse, quando se trata de declaração de fraude à execução, existe o risco de um potencial prejuízo para o comprador. E, ainda, que seja possível propor uma ação de regresso, e se obtenha uma sentença favorável, o êxito na satisfação do crédito poderá não ocorrer.


[1] Art. 54 Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

(…)

§ 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

[2] ANDRIGHI, Fátima Nancy. GUARIENTO, Daniel Bittencourt. Fraude à execução: o Enunciado 375 da Súmula/STJ e o projeto do novo Código de Processo Civil. ALVIM, Arruda; ALVIM, Eduardo Arruda; BRUSCHI, Gilberto Gomes; CHECHI, Mara Larsen; COUTO, Mônica Bonetti (Coords.). Execução civile temas afins do CPC/1973 ao Novo CPC: estudos em homenagem ao professor Araken de Assis. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 354.

[3] Ibidem. p. 355.

[4] ANDRIGHI, Fátima Nancy. GUARIENTO, Daniel Bittencourt. Op. Cit. p. 355.

[5] Ibidem. p. 357.

[6] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário: teoria e prática. – 17. Ed. – Rio de Janeiro: forense, 2022, pág.799/800.

[7] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário: teoria e prática. Op. Cit. p. 802.

[8] Ibidem. p. 803.

[9] Ibidem. p. 804/805.

[10] Ibidem. p. 805.

[11] Ibidem. p. 805/806

[12] ANDRIGHI, Fátima Nancy. GUARIENTO, Daniel Bittencourt. Op. Cit. p. 355/356.

Leila Almeida

Advogada, graduada há mais de 15 anos, especialista em Direito Imobiliário. Atua com ênfase em assessoria jurídica preventiva e contenciosa, com experiência em due diligence imobiliária, regularização de imóveis e aquisição em leilões judiciais e extrajudiciais.

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