Direito real de habitação e o princípio da concentração no Registro de Imóveis

Muito se discute acerca da exigência ou não do registro do Direito Real de habitação na matrícula do imóvel, a fim de garantir publicidade e segurança nas transações imobiliárias, especialmente diante do princípio da concentração dos atos na matrícula.

O direito real de habitação, previsto no artigo 1.831 do Código Civil e artigo 7o, parágrafo único, da Lei 9.278/96, é um direito garantido por Lei ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, independentemente do regime de bens, de permanecer residindo no imóvel de residência do casal após o falecimento do outro cônjuge/companheiro.

Trata-se de um direito real sobre coisa alheia de gozo e fruição e, portanto, coexistem sobre o mesmo imóvel dois direitos reais de titulares distintos: aquele que possui a propriedade do bem e aquele beneficiário do direito real de habitação. Nada impede, obviamente, que o beneficiário do direito real de habitação também seja proprietário do imóvel em condomínio com os demais herdeiros.

Esse direito real de habitação, conforme já reconhecido em julgados do Superior Tribunal de Justiça, decorre de imposição legal e tem natureza vitalícia e personalíssima, o que significa que o cônjuge ou companheiro sobrevivente pode permanecer no imóvel até a sua morte. Esse caráter vitalício garante ao beneficiário o direito de continuar habitando o imóvel ainda que seja alienado a terceiros. Aqui está, portanto, a grande problemática da não inscrição desse direito real de habitação na matrícula do imóvel.

Por tratar-se de um direito real ex vi legis, ele nasce automaticamente com a abertura da sucessão e é conferido a favor do cônjuge/companheiro sobrevivente, independentemente, para sua instituição, de ato lavrado e previsto em partilha de bens. Devido a sua natureza, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que para produzir efeitos é desnecessária a sua inscrição no cartório de registro de imóveis1.

Além disso, da leitura restrita do Artigo 167, I, item 7, da Lei 6.015/732, verifica-se que não se submete ao registro o direito real de habitação proveniente do direito de família. Portanto, em uma primeira análise, não há qualquer exigência de que esse direito conste na matrícula do imóvel.

Contudo, essa interpretação literal da Lei vem perdendo espaço frente ao princípio da concentração dos atos na matrícula. Segundo o registrador João Pedro Lamana Paiva: “O princípio da concentração propugna que nenhum fato jurígeno ou ato jurídico que diga respeito à situação jurídica de um imóvel ou às mutações subjetivas que possa vir a sofrer podem ficar indiferentes ao registro/averbação na respectiva matrícula imobiliária. A matrícula (fólio real), em substituição às inscrições de cunho pessoal e cronológico, deve ser tão completa que dispense diligências outras até criar-se a cultura da segurança jurídica […] nada referente ao imóvel deve ficar alheio à matrícula3.

O princípio da concentração, ainda muito incipiente, foi positivado pela primeira vez em 2015, com a Lei 13.097. A partir de então vem ganhando força e eficiência, especialmente com as últimas alterações promovidas pelas Leis 14.382/22 e 14.825/24 no artigo 54 da Lei 13.0974. Percebe-se, então, um movimento jurídico em prol da concentração dos atos na matrícula, garantindo ao terceiro adquirente do imóvel maior segurança e confiabilidade dos atos constantes da matrícula, desburocratizando, assim, a análise de risco (“due diligence”) que deve ser feita pelo adquirente. Ao menos esse é o grande objetivo deste princípio.

Pois bem. Diante da crescente sedimentação do princípio da concentração, torna-se ainda mais importante que o direito real de habitação conste publicizado na matrícula. Pois trata- se de fato jurídico com repercussão na situação jurídica do imóvel, impactando no direito de propriedade daquele que vai adquirir referido bem.

Vejamos um exemplo: João é casado com Maria no regime da separação obrigatória de bens e eles possuem dois filhos. João vem a falecer, Maria apesar de não ter meação (suponhamos que não há esforço comum que possa atrair a súmula 377 do STF) e não ser herdeira em concorrência com os filhos por expressa previsão legal (Art. 1829 do Código Civil), ela ainda assim terá garantido o direito real de habitação. Se os filhos que herdaram esse bem resolverem vendê-lo a um terceiro adquirente, esse terceiro terá que suportar a habitação de Maria no imóvel até o seu falecimento, pois o direito real de habitação é vitalício. Perceba a insegurança que essa transferência imobiliária gerará ao terceiro adquirente se esse direito real de habitação não estiver expressamente inscrito na matrícula.

Atentando-se a esse cenário, a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo já possui julgado reconhecendo a necessidade de constar na matrícula o registro do direito real de habitação. Inclusive, no entendimento desta Corregedoria, o direito real de habitação previsto no artigo 1.831 do Código Civil não é oriundo do direito de família, mas sim do direito sucessório, tanto que está situado no Livro V – Do direito das sucessões, do Código Civil. Destarte, não se aplica no caso a parte final do artigo 167, I, item 7, da Lei 6.015/73 (“[…] quando não resultarem do direito de família”), sendo correto, portanto, o registro do direito real de habitação efetivado à vista do título apresentado.

Nesse mesmo sentido, há previsão expressa na Consolidação Normativa Extrajudicial do Rio Grande do Sul quanto ao registro do direito real de habitação decorrente do direito sucessório.

Importante mencionar também que ao direito real de habitação se aplicam, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto (Artigo 1.416 do Código Civil). Sendo ambos direitos reais de fruição sobre coisa alheia, se assemelham quanto à sua natureza e se diferenciam quanto a algumas especificidades de cada instituto. Nesse sentido, a CGJ/SP, considerando registrável o direito real de habitação, conforme mencionado acima, aplicou na cobrança dos emolumentos a mesma regra prevista para cobrança do usufruto4.

Portanto, considerando o amplo alcance do princípio da concentração e as consequências jurídicas da não inscrição na matrícula do imóvel do direito real de habitação, proveniente do direito sucessório, torna-se fundamental que esse direito conste no instrumento do inventário e seja levado a registro na matrícula do Registro de imóveis competente, tornando público e cognoscível de eventual terceiro adquirente de boa-fé. Assim, aos poucos e a passos largos, concentraremos ainda mais atos jurídicos com repercussão jurídica no imóvel no fólio real.

  1.  REsp 565.820/PR, Terceira Turma, DJ 14/03/2005; REsp 282.716/SP, Terceira Turma, DJ 10/04/2006 ↩︎
  2.  Art. 167 da Lei 6015 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos
    I – o registro: 7) do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família; ↩︎
  3. LAMANA PAIVA, João Pedro. Princípio da Concentração. Disponível em: http://registrodeimoveis1zona.com.br/wp- content/uploads/2014/09/Principio_da_Concentracao.pdf. Acesso em: 13 de setembro de 2023 ↩︎
  4. CGJSP – RECURSO ADMINISTRATIVO: 0011489-19.2019.8.26.0309 ↩︎

Café com registro de imóveis 

Assista aqui as últimas lives do café com registo de imóveis, programa que ocorre de segunda a sexta no Instagram desde janeiro de 2021.

Sobre o autor

Comentários

tenha acesso ao nosso arsenal de cursos