Na semana passada, vimos como o Brasil demorou a aceitar a holding como instrumento legítimo — em parte por herança cultural, em parte por desconfiança institucional. Mas uma vez superada essa barreira, a pergunta deixou de ser “isso pode?” e passou a ser “como fazer?”
Quando foi que a holding passou a ser usada como ferramenta familiar no Brasil?
Essa pergunta é mais importante do que parece. Porque marca a virada de chave entre dois mundos: o da estrutura societária usada para controlar empresas — e o da estrutura voltada à proteção do patrimônio das famílias. Este artigo examina quando — e por que — a holding deixou de ser apenas uma estratégia empresarial e passou a ocupar um novo papel: o de ferramenta de planejamento patrimonial familiar.
1. Décadas de 1970–1990 — A holding como estratégia empresarial
A consolidação da figura da holding no Brasil se deu inicialmente no contexto empresarial. Em 1976, durante o governo militar do presidente Ernesto Geisel, foi sancionada a Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404), concebida com o apoio técnico do então Ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen.
O objetivo era modernizar o mercado de capitais, atrair investimentos e organizar grandes grupos econômicos. Já no artigo 2º, §3º da nova lei, o texto autorizava expressamente que uma companhia tivesse por objeto a participação em outras sociedades — ou seja, legitimava, de forma direta, a constituição de sociedades controladoras: as chamadas holdings.
A holding, nesse ambiente, era uma S.A. criada para controlar outras sociedades — voltada à governança e à centralização administrativa. Assim, a lei reconhecia como atividade empresária algo que, na prática, não envolvia produção ou circulação de bens e serviços. Tratava-se de uma atividade de natureza essencialmente societária — uma “atividade empresária de ficção”, cuja finalidade podia ser tanto o controle de subsidiárias como a obtenção de vantagens fiscais por meio da participação societária.
Diferente de qualquer outra atividade empresária, essa não pode ser exercida informalmente: a constituição da sociedade deve anteceder o exercício da atividade. Em outras palavras, para participar de outras sociedades, é necessário primeiro estar formalmente constituído como tal.
Além disso, por suas características, uma vez constituída, a holding não está sujeita a prazos ou exigências de estrutura física para iniciar sua operação. Isso permite que seja usada exclusivamente como instrumento de organização patrimonial, mesmo sem atividade operacional ou sede funcional. Embora a figura da holding tenha sido prevista inicialmente pela Lei das Sociedades por Ações, e seu surgimento esteja associado à forma societária da companhia (S.A.), durante muito tempo houve dúvida quanto à possibilidade de uma sociedade limitada exercer essa função de forma segura.
A ausência de previsão legal expressa para esse tipo de organização patrimonial contribuiu para que, até a virada do século, a forma predominante fosse mesmo a da sociedade anônima. Ainda não havia segurança jurídica para constituir holdings sob a forma de sociedade limitada, o que restringia a maioria das experiências à forma societária da companhia (S.A.). Ainda não havia segurança jurídica para constituir holdings sob a forma de sociedade limitada, o que restringia a maioria das experiências à forma societária da companhia (S.A.).
Esse cenário começou a mudar com o fim do regime militar (1985) e a promulgação da Constituição de 1988, que fortaleceu o direito de propriedade (art. 5º, XXII) e o direito à herança (art. 5º, XXX), além de delegar aos estados a competência para instituir o ITCMD (art. 155, I).
Na década seguinte, o Plano Real (1994) estabilizou a moeda e permitiu a acumulação real de patrimônio pelas famílias brasileiras. Esse novo ambiente econômico e jurídico tornou possível pensar em planejamento patrimonial de longo prazo.
2. A virada do Código Civil de 2002
Os efeitos da Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/1977), sancionada ainda durante o regime militar, começaram a se fazer sentir com mais força na virada do milênio. Ao permitir a dissolução formal do casamento e legitimar novas configurações familiares, ela contribuiu para a multiplicação de famílias reconstituídas, plurais e muitas vezes desiguais do ponto de vista patrimonial e sucessório. Essa transformação familiar preparou o terreno para a reforma civil que viria a seguir.
E mais: com a Lei do Divórcio foi-se oficializando a realidade das chamadas “famílias mosaico”, nas quais filhos de diferentes uniões passam a compartilhar o mesmo teto, sendo tratados e tratando-se afetivamente entre si como irmãos, mas muitas vezes com diferentes posições jurídicas e direitos hereditários, tornando mais complexa a questão sucessória.
O Código Civil de 2002 também trouxe uma inovação relevante: o artigo 1.053, parágrafo único, passou a permitir expressamente que o contrato social da sociedade limitada preveja a aplicação supletiva da Lei das Sociedades por Ações. Antes disso, tal aplicação dependia de construção doutrinária e jurisprudencial. Com a nova previsão, a LTDA pôde adotar, de forma contratual, institutos próprios das companhias, sem perder sua estrutura mais simples e flexível.
Embora a holding familiar não tenha surgido como resposta ao divórcio em si, seus efeitos contribuíram para sua adoção. Ao legitimar novas estruturas conjugais, a Lei do Divórcio ampliou a complexidade das relações familiares, sobretudo nas famílias reconstituídas. Nesses contextos, a holding familiar passou a ser empregada para organizar a transmissão de bens, garantir a autonomia de patrimônios anteriores e evitar conflitos entre diferentes núcleos familiares.
3. A demanda por organização patrimonial da família
Com o tempo, o cenário social mudou: as famílias brasileiras tornaram-se mais complexas, com múltiplos núcleos, uniões reconstituídas e relações interpessoais muitas vezes frágeis. A figura do patriarca — ou matriarca — como elo de unidade foi perdendo força, e os conflitos sucessórios passaram a ganhar espaço. Herdeiros hoje estão mais conscientes de seus direitos, têm mais acesso à informação e não hesitam em questionar decisões ou exigir prestação de contas. O que antes se resolvia internamente, agora é frequentemente judicializado.
Além da sucessão causa mortis, o sistema de holding familiar também vem se mostrando eficiente para organizar a partilha por dissolução da sociedade conjugal. Ao permitir a segregação patrimonial por meio de quotas e cláusulas específicas, a holding oferece aos ex-cônjuges a possibilidade de partilhar o patrimônio comum com mais previsibilidade, continuidade e proteção.
Conhecemos, inclusive, casais que se separam de fato mas permanecem, de direito, casados — tão-somente por questões patrimoniais que envolvem não apenas eles próprios, mas também os filhos nascidos da união. Essa paralisia compromete o prosseguimento de suas vidas e a formalização de novas uniões conjugais, gerando insegurança e sobreposição de interesses.
Poderia o sistema de holding familiar atender a essa demanda por organização patrimonial, que ocorre inteiramente no campo preventivo do Direito, com forte ancoragem no Direito Imobiliário e no Direito de Família e das Sucessões? Nosso entendimento é que sim, com a vantagem adicional de não se depender de decisões judiciais, pois esses sistemas são construídos e empregados, em regra, fora do Judiciário, por meio de atos extrajudiciais como a constituição de sociedades, a integralização de bens e a pactuação de cláusulas sucessórias e restritivas. Com o sistema de holding, o Direito Extrajudicial passou a ser o melhor ambiente para o planejamento patrimonial da família brasileira.
É certo que sistemas de holding familiar não são a solução para todas as famílias. Todavia, com processos de inventário longos, complexos e custosos, sem falar na reforma tributária logo aí adiante, preocupando até mesmo famílias com patrimônio modesto, mais e mais famílias vês considerando a holding familiar como solução.
4. De exceção a tendência
O que antes era restrito a poucas famílias assessoradas por grandes escritórios virou tema de palestras, cursos e rodas de conversa entre irmãos. A holding familiar saiu dos bastidores das grandes empresas e passou a ocupar o centro das decisões familiares.
Essa transformação se deve a uma combinação de fatores:
- A democratização do conhecimento jurídico e tributário;
- A profissionalização dos cartórios e o avanço do direito extrajudicial;
- A percepção de que não planejar custa mais caro — seja em tributos, seja em conflitos.
Esses fatores explicam por que a holding familiar passou a representar mais do que economia tributária — passou a representar organização, continuidade e paz.
Se hoje a holding familiar se tornou sinônimo de planejamento patrimonial, o que ela será amanhã? Na próxima semana, vamos entender como a holding familiar passou a permitir que a sucessão deixasse de ser um evento da morte — e passasse a ser uma decisão em vida.
Referências
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LEITE, George Salomão. Holding Familiar. São Paulo: Atlas, 2019.
SCHWARTZ, Rosely Benevides de Oliveira. Direito Notarial e Registral. São Paulo: Método, 2020.
Piraju Borowski
Piraju Borowski Mendes é sócio fundador da PBCA Planejamento, que tem a missão de elevar a conscientização e a prática do planejamento patrimonial entre as famílias brasileiras. Coronel da reserva do Exército Brasileiro e membro do Time Holding Brasil, exerce a atividade de consultoria aplicada ao planejamento patrimonial das famílias. É Doutor em Ciências Militares, por notório saber; Especialista em Direito Imobiliário Extrajudicial e Especializando em Direito de Família e Sucessões Extrajudicial. Dedica-se ao estudo e elaboração de holdings familiares desde 2021, seguindo a metodologia de planejamento patrimonial que emprega como ferramenta o sistema de holding familiar.