A regularização fundiária é uma pauta urgente no Brasil contemporâneo. Milhões de imóveis seguem sem matrícula individualizada, impossibilitando o exercício pleno do direito de propriedade e comprometendo políticas públicas voltadas à moradia digna, ao desenvolvimento urbano e à governança territorial. Nesse contexto, o instituto da estremação, previsto no art. 571 do Código de Processo Civil, representa um mecanismo extrajudicial eficiente, mas que carece de normatização nacional padronizada, sobretudo quanto à sua entrada no Registro de Imóveis.
A estremação permite ao coproprietário de uma fração ideal promover, com o consentimento dos confrontantes, a individualização de sua área já destacada de fato. Diferente da divisão amigável tradicional, que exige a anuência de todos os condôminos, a estremação rompe com a lógica da paralisação dominial, conferindo efetividade ao princípio da função social da propriedade. Ela é especialmente útil em condomínios pro diviso, em que as frações já estão delimitadas de forma informal, mas carecem de matrícula própria no fólio real.
A atuação coordenada do tabelião de notas — responsável pela lavratura da escritura pública de estremação — e do registrador de imóveis — a quem compete o exame do título para a abertura de matrícula — é o cerne da segurança jurídica do procedimento. Esse controle cruzado entre os agentes extrajudiciais assegura o cumprimento dos princípios da especialidade, continuidade, disponibilidade e publicidade registral, sem necessidade de judicialização.
Além disso, a presença de advogado é indispensável para garantir a adequada orientação jurídica das partes, a análise da cadeia dominial, a verificação da inexistência de conflitos e a regular constituição do título que será levado a registro. O procedimento de estremação envolve questões patrimoniais relevantes e exige a manifestação de vontade com pleno conhecimento das consequências legais, o que pressupõe assessoramento técnico especializado.
Contudo, a ausência de uma normativa nacional unificada tem impedido a consolidação do instituto como instrumento regular de política fundiária. Estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Tocantins, Paraná, Bahia e Pernambuco já editaram provimentos locais disciplinando a estremação, com ótimos resultados. Todavia, a ausência de diretrizes federais impede a replicação uniforme dessas boas práticas, gerando insegurança jurídica e desigualdade de tratamento entre os cidadãos conforme sua unidade da federação.
A ausência de matrícula individual não é uma questão meramente burocrática — trata-se de uma violação indireta de direitos fundamentais, entre eles, o direito à propriedade (art. 5º, XXII, CF/88), à moradia (art. 6º), ao devido processo legal e, especialmente, à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Sem o registro do imóvel, o proprietário não pode acessar o sistema financeiro, formalizar garantias, obter crédito para empreender, regularizar edificações ou mesmo transmitir legalmente o bem. A inexistência de título, portanto, compromete o mínimo existencial e perpetua a informalidade urbana e rural.
Nesse sentido, o instituto da estremação deve ser compreendido também como ferramenta de inclusão econômica e cidadã. A matrícula própria transforma a posse em ativo econômico, viabilizando acesso a políticas de crédito, programas habitacionais, regularizações tributárias e benefícios públicos. Promover a regulamentação nacional da estremação com entrada direta no Registro de Imóveis é alinhar o ordenamento jurídico brasileiro às diretrizes constitucionais de efetividade, eficiência e função social da propriedade.
A Portaria CNJ nº 4/2025, ao instituir o Prêmio Solo Seguro, evidencia a busca institucional por soluções extrajudiciais, inovadoras e replicáveis. Nesse contexto, a estremação deve ser elevada à categoria de política pública de regularização fundiária, com a devida regulamentação nacional via provimento do Conselho Nacional de Justiça, assegurando seu uso uniforme em todas as serventias de registro do país.
A uniformização normativa — assim como ocorreu com os inventários, divórcios e adjudicações compulsórias extrajudiciais — é o caminho para consolidar a estremação como procedimento técnico, seguro, célere e inclusivo. A segurança jurídica não pode ser privilégio de alguns estados, mas sim um direito nacional e acessível, garantido por regramento claro, técnico e integrativo, que promova a justiça social e o desenvolvimento sustentável.
Autoras:
Fabiane Queiroz Mathiel Dottore – Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabeliã de Notas do distrito de Jordanésia, Cajamar/SP. Mestre em Direito – Positivação e Concretização Jurídica dos Direitos Humanos pelo Centro Universitário Fieo- Unifieo. Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho. Pós Graduada em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas em convênio com o Instituto Brasileiro de Estudos. Professora.
Glaucia De Carvalho Schimidt – Especialista em direito do trabalho de Faculdade de Direito da USP e em direito tributário pela PUC Minas. Graduou-se graduação em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (2003) e em Ciências Econômicas pela UNICSUL (2011). Atualmente é Registradora Civil e Tabeliã de notas no Município de Caieiras/SP. Atuando no extrajudicial há 11 anos.
Isadora Barbosa Silva – Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabeliã de Notas do Distrito de Eugênio de Melo, São José dos Campos/SP. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Pós Graduada em Direito Notarial e Registral. Pós Graduada em Direito Civil.
Maraisa Beraldo Sanches – Graduada em Direito, com Especialização em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil. Professora e Fundadora da “Subscrevo” Treinamento para Colaboradores e Contabilidade para Cartórios. Professora em outras instituições profissionalizantes de Direito Notarial e Registral. Autora e Coautora de artigos científicos. Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabeliã de Notas no município de Mira Estrela, estado de São Paulo. Ex Interina em Tabelionato de Notas e de Protestos de Letras e Títulos.