Mesmo após a chegada da holding ao Brasil na forma empresarial, as famílias brasileiras continuaram
longe desse instrumento. Enquanto grandes grupos econômicos passavam a usar holdings para
reorganização societária, o patrimônio familiar permanecia desprotegido, disperso e, em muitos casos,
informal. Neste artigo, vamos explorar as razões históricas, culturais e jurídicas pelas quais a holding
familiar demorou tanto a ser compreendida e adotada no país.
Terra, título e tradição: a longa herança da informalidade
Desde a chegada dos portugueses, a terra no Brasil foi tratada como instrumento de poder político. O
modelo patrimonialista lusitano se consolidou aqui sob a forma das capitanias hereditárias — faixas de
terra concedidas a nobres com poderes quase senhoriais. Mais tarde, o sistema de sesmarias permitia
que a Coroa doasse glebas a quem se comprometesse a cultivar, mantendo o viés concentrador. Essas
concessões eram muitas vezes utilizadas como forma de recompensa a militares de destaque,
membros da administração ou aliados políticos. O Estado colonial premiava a lealdade com território.
A estrutura fundiária brasileira tem suas raízes em modelos de concessão como as capitanias
hereditárias e, depois, o sistema de sesmarias. A propriedade da terra, mais do que um ativo produtivo,
era um símbolo de poder político e social. A Lei de Terras de 1850 procurou formalizar a posse, mas
apenas regularizou a concentração. A república herdou uma cultura em que terras eram transmitidas
de geração a geração sem a devida formalização registral, muitas vezes de forma verbal ou apenas
com base em escrituras particulares.
Essa informalidade dificultou a constituição de pessoas jurídicas que recebessem esses bens. Afinal,
não se pode integralizar em uma sociedade um bem que não esteja plenamente registrado, livre e
desembaraçado.
Foi apenas em 1964, com a promulgação do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), que o Brasil
reconheceu oficialmente a necessidade de reformar sua estrutura fundiária. A lei estabeleceu a função
social da propriedade rural e buscou disciplinar o uso, a posse e a transmissão da terra — ainda que
seus efeitos práticos tenham sido limitados e lentos. O modelo patrimonialista herdado da colônia
continuou a prevalecer por décadas, sustentando uma cultura de concentração e informalidade que
dificultava o surgimento de estruturas jurídicas como a holding familiar.
O patriarca como instituição: o “CNPJ humano”
Esse modelo patriarcal também impôs limites à participação feminina na gestão e titularidade do
patrimônio. Durante décadas, muitas mulheres sequer possuíam CPF, conta bancária ou matrícula de
imóvel em seu nome. A legislação civil restringia sua autonomia, e sua presença nos documentos da
família era muitas vezes simbólica. Isso reforçou a centralização de bens no nome de um único titular
e dificultou ainda mais a formalização patrimonial.
Por muito tempo, o chefe da família era, na prática, a própria holding. Tudo estava em seu nome: terras,
contas bancárias, investimentos e dívidas. Com sua morte, a família não herdava apenas os bens, mas
também o caos documental e o risco sucessório. Não havia separação entre a pessoa e o patrimônio,
entre o indivíduo e a gestão.
Essa confusão patrimonial era não apenas aceita, mas considerada natural. Planejamento era visto
como desconfiança, e discutir sucessão em vida era tido como falta de respeito.
Registros, cartórios e a lenta modernização
Além disso, a consolidação de uma cultura jurídica mais moderna, especialmente com a entrada em
vigor do Código Civil de 2002, reforçou a segurança dos registros públicos e ampliou o uso de
instrumentos como contratos sociais, testamentos e escrituras de doação. Esse novo marco legal
fortaleceu o papel da pessoa jurídica na proteção patrimonial e criou bases mais sólidas para o uso
estratégico da holding familiar.
No centro desse cenário está a diferença entre propriedade e posse — dois institutos frequentemente
confundidos, mas juridicamente distintos. A propriedade é o direito real pleno, que confere ao titular
quatro poderes clássicos: usar (ius utendi), gozar (ius fruendi), dispor (ius abutendi) e reaver (ius
vindicandi). Já a posse é a situação de fato de quem exerce algum desses poderes, com ou sem
respaldo registral. Em um país onde a posse foi amplamente tolerada como substituta da propriedade,
o risco patrimonial sempre esteve presente.
No meio rural, essa formalização foi impulsionada por instrumentos como o CCIR (Certificado de
Cadastro de Imóvel Rural), emitido pelo INCRA, e o ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial
Rural), cuja declaração exige dados atualizados da matrícula, do domínio e da ocupação. A integração
entre Receita Federal, INCRA e os cartórios de registro de imóveis tornou gradualmente impossível
manter grandes glebas em situação informal. A partir dos anos 2000, quem não regularizava sua terra
passava a ter dificuldades para acessar crédito, transferir bens ou formalizar sucessões.
O mesmo ocorre com o imposto sobre heranças, previsto desde a Constituição de 1891 e atualmente
disciplinado pelo artigo 155, inciso I, da Constituição de 1988. Conhecido como ITCMD (Imposto sobre
Transmissão Causa Mortis e Doação), ele representa um custo direto sobre a transferência
patrimonial. Embora as alíquotas variem por estado, seu impacto sobre famílias com bens mal
organizados é significativo. Em muitos casos, herdeiros são obrigados a vender parte dos bens apenas
para quitar o imposto. A ausência de planejamento transforma um direito — o de herdar — em um peso
financeiro.
A consolidação dos registros públicos no Brasil também foi tardia. O sistema registral ganhou corpo
apenas na segunda metade do século XX, e mesmo assim, com grandes disparidades regionais. A
falta de padronização, a lentidão burocrática e a ausência de integração entre órgãos impediram a
circulação organizada da propriedade.
Somente com a informatização dos cartórios, a implantação de cadastros nacionais e a maior exigência
fiscal é que as famílias passaram a se ver obrigadas a organizar seu acervo patrimonial de forma formal.
Um dos efeitos colaterais mais recorrentes dessa informalidade foi o surgimento de litígios e
reivindicações baseadas na usucapião. Quando o domínio não estava regularizado ou havia omissão
dos herdeiros quanto ao uso e posse, terceiros — e até mesmo membros da família — passaram a
ocupar os imóveis e buscar sua declaração judicial como proprietários. A ausência de registro, a falta
de estrutura jurídica e o desconhecimento dos limites formais de cada bem contribuíram para a perda
de áreas inteiras, muitas vezes sem que os proprietários sequer percebessem. A usucapião passou a
ser não apenas um mecanismo de justiça social, mas também um sintoma da desorganização
patrimonial familiar.
A cultura do improviso e a resistência à profissionalização
A produção rural também sofreu os efeitos dessa lógica. Em muitos casos, propriedades familiares
mantinham atividades produtivas em escala reduzida, com baixo aproveitamento técnico e sem
qualquer controle formal de receitas, custos ou lucros. O conceito de escala — essencial para viabilizar
economicamente a atividade — era ignorado, e os encargos fiscais, trabalhistas e operacionais recaíam
diretamente sobre o responsável informal da família. Sem estrutura jurídica nem contábil, muitos
imóveis produtivos tornaram-se economicamente inviáveis ao longo das gerações.
Além da informalidade documental, havia (e ainda há) uma cultura de improviso na administração do
patrimônio. Famílias resistiam à ideia de contratar contadores, advogados ou consultores para tratar
de seu acervo. Preferiam manter tudo sob controle direto, mesmo que de forma ineficiente e arriscada.
O Brasil conviveu por muito tempo com o mito de que “o que é da família não se mistura com empresa”.
Mas foi justamente a ausência de profissionalização que tornou tantas sucessões familiares
traumáticas.
Conclusão
A holding familiar demorou a chegar ao Brasil porque o Brasil demorou a organizar sua relação com o
patrimônio. Entre terras sem escritura, patriarcas absolutistas e registros despadronizados, formou-se
uma cultura de improviso que ainda hoje desafia o planejamento sucessório. Mas esse cenário está
mudando. E, na próxima semana, veremos como a holding saiu das grandes empresas e começou a
se tornar um cofre familiar.
Sobre o autor
Piraju Borowski Mendes é sócio fundador da PBCA Planejamento, que tem a missão de elevar a conscientização e a prática do planejamento
patrimonial entre as famílias brasileiras. Coronel da reserva do Exército Brasileiro e membro do Time Holding Brasil, exerce a atividade de
consultoria aplicada ao planejamento patrimonial das famílias. É Doutor em Ciências Militares, por notório saber; Especialista em Direito Imobiliário
Extrajudicial e Especializando em Direito de Família e Sucessões Extrajudicial. Dedica-se ao estudo e elaboração de holdings familiares desde 2021,
seguindo a metodologia de planejamento patrimonial que emprega como ferramenta o sistema de holding familiar.
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Piraju Borowski