INTRODUÇÃO
A usucapião familiar representa um avanço significativo no reconhecimento de direitos fundiários relacionados à moradia e à proteção da dignidade humana. Regulada pelo art. 1.240-A do Código Civil de 2002, introduzido pela Lei nº 12.424/2011, ela permite que um dos cônjuges ou companheiros adquira a propriedade de imóvel urbano em razão do abandono do lar pelo outro, desde que preenchidos certos requisitos legais. A inovação do procedimento extrajudicial, previsto no art. 216-A da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), e atualmente regulamentado pelo Provimento nº 149/2023 do CNJ, ampliou a efetividade e a celeridade na regularização imobiliária.
A via extrajudicial da usucapião familiar, embora ainda pouco explorada na prática, apresenta vantagens consideráveis, como a desjudicialização, a economia de tempo e custos, e a maior autonomia dos envolvidos. No entanto, também levanta questionamentos relevantes, como a possibilidade de reconhecimento de abandono do lar no âmbito administrativo, a atuação do tabelião de notas e do registrador de imóveis, além da necessidade de anuência dos confrontantes e coproprietários.
Este artigo tem por objetivo analisar as possibilidades e limitações da usucapião familiar pela via extrajudicial, considerando a legislação aplicável, os entendimentos doutrinários e os desafios práticos enfrentados pelos operadores do direito. O enfoque recai sobre os aspectos procedimentais e interpretativos desse importante mecanismo de acesso à moradia e regularização fundiária.
Com isso, pretende-se contribuir para a difusão do conhecimento sobre o tema, incentivando a adoção segura e eficaz da via administrativa como alternativa legítima à judicialização excessiva, alinhada aos princípios da celeridade e da eficiência processual.
Ao longo do trabalho, serão examinados os fundamentos jurídicos, os requisitos formais, os documentos indispensáveis, os principais entraves enfrentados pelos cartórios, e as soluções práticas à luz do Provimento nº 149/2023 do CNJ.
1. FUNDAMENTOS E EVOLUÇÃO DA USUCAPIÃO FAMILIAR NO CONTEXTO EXTRAJUDICIAL
A usucapião familiar nasce no contexto do direito de família e da função social da propriedade, com o propósito de garantir a moradia àquele que, após o abandono do lar pelo cônjuge ou companheiro, permanece no imóvel com posse exclusiva e ininterrupta. Ao proteger a parte vulnerável da relação, o legislador visou garantir segurança jurídica e estabilidade patrimonial à família desfeita.
Inicialmente, a usucapião — inclusive a familiar — era concebida exclusivamente como instituto judicial, exigindo sentença para declaração de propriedade. A partir da vigência do novo Código de Processo Civil, em 2016, e da regulamentação pelo Provimento nº 65/2017 do CNJ, a via extrajudicial passou a ser reconhecida como meio viável para diversas espécies de usucapião, inclusive a familiar, ainda que com peculiaridades.
A inovação permitiu que a usucapião fosse requerida diretamente em cartório, mediante ata notarial lavrada por tabelião de notas, acompanhada da documentação exigida. Trata-se de avanço significativo, especialmente considerando o volume de ações judiciais e a morosidade do Judiciário. Contudo, para a usucapião familiar, o elemento subjetivo do abandono de lar impõe cuidados adicionais.
Ao permitir a usucapião por escritura pública e registro, sem necessidade de processo judicial, o legislador promoveu a desburocratização da regularização imobiliária. Entretanto, a natureza litigiosa de muitos casos de usucapião familiar levanta dúvidas quanto à sua viabilidade plena na esfera extrajudicial, exigindo atuação técnica, prudente e fundamentada do tabelião e do registrador.
Apesar das dificuldades, o reconhecimento da usucapião familiar por meio extrajudicial tem sido admitido em casos nos quais há documentos suficientes e ausência de oposição expressa, revelando um caminho possível, embora ainda controverso, para a efetivação célere do direito à moradia.
2. REQUISITOS ESPECÍFICOS PARA O RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL
A usucapião familiar extrajudicial, tal como as demais modalidades, exige o cumprimento rigoroso de requisitos objetivos e subjetivos. O primeiro deles é a posse exclusiva, contínua e sem oposição do imóvel urbano, com até 250m², pelo prazo mínimo de dois anos. Essa posse deve ser exercida com ânimo de dono e com destinação exclusiva à moradia.
O segundo requisito fundamental é a comprovação do abandono do lar por parte do cônjuge ou companheiro, o que representa um desafio peculiar na via extrajudicial. Tal abandono precisa ser caracterizado como voluntário e duradouro, não decorrente de acordo entre as partes ou de separação judicial regular. A ata notarial torna-se aqui um instrumento central para documentar essa realidade.
Além disso, o requerente não pode ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Essa condição objetiva deve ser comprovada por meio de certidões negativas de imóveis fornecidas pelos cartórios competentes. A ausência de patrimônio imobiliário reforça o caráter social do instituto e sua vocação de proteção à moradia da parte hipossuficiente.
Outro aspecto relevante é a necessidade de notificação dos confrontantes e eventuais coproprietários. Caso haja oposição formal por qualquer interessado, o procedimento extrajudicial é obstado, devendo o interessado recorrer à via judicial. Essa limitação impõe, na prática, que a usucapião familiar pela via cartorária ocorra apenas em casos de consenso tácito ou omissão prolongada.
Por fim, o requerente deve apresentar planta e memorial descritivo do imóvel com assinatura de responsável técnico e anuência dos confrontantes, além dos documentos pessoais e certidões exigidas. O respeito a essas formalidades é essencial para assegurar a legalidade e eficácia do procedimento perante o registro imobiliário.
3. O PAPEL DO TABELIÃO DE NOTAS E DO REGISTRADOR DE IMÓVEIS
O sucesso da usucapião familiar extrajudicial depende da atuação diligente e técnica de dois agentes extrajudiciais: o tabelião de notas e o oficial do registro de imóveis. Ambos exercem funções públicas delegadas e são responsáveis por zelar pela legalidade, segurança e autenticidade dos atos jurídicos.
O tabelião é o responsável por lavrar a ata notarial que documenta a posse e os elementos fáticos necessários à configuração da usucapião. Para tanto, realiza diligência no local, ouve testemunhas, analisa documentos e descreve detalhadamente a situação do imóvel e do requerente. No caso da usucapião familiar, é crucial que ele registre elementos que evidenciem o abandono do lar e a posse exclusiva.
Já o oficial de registro de imóveis atua na qualificação do título. Cabe a ele verificar a regularidade formal do procedimento, a completude da documentação e a ausência de oposição ou impedimentos legais. Sua análise não é meramente burocrática, mas técnica, podendo exigir complementações ou indeferir o pedido se entender que os requisitos legais não foram atendidos.
Ambos os agentes devem agir com prudência e imparcialidade, conscientes de que estão lidando com direito de propriedade e situações familiares sensíveis. A ausência de manifestação do cônjuge ou companheiro que abandonou o lar não pode ser interpretada de forma automática como anuência, exigindo análise contextual.
Além disso, é papel do tabelião e do registrador orientar as partes sobre os limites e possibilidades da via extrajudicial, evitando falsas expectativas. A correta aplicação do Provimento nº 65/2017 e o diálogo com a doutrina e jurisprudência são fundamentais para assegurar segurança jurídica no procedimento.
Portanto, o procedimento de usucapião familiar extrajudicial exige preparo técnico, sensibilidade jurídica e atuação ética dos profissionais envolvidos.
4. VANTAGENS E LIMITAÇÕES DA VIA EXTRAJUDICIAL
A principal vantagem da usucapião familiar pela via extrajudicial é a celeridade. Enquanto um processo judicial pode levar anos, o procedimento extrajudicial bem instruído pode ser concluído em poucos meses. Isso representa um ganho real para o requerente, especialmente em contextos de vulnerabilidade social.
Outra vantagem importante é a redução de custos processuais e honorários advocatícios, já que o processo se desenvolve em cartório e dispensa a atuação do Poder Judiciário, embora continue sendo necessário o acompanhamento por advogado. A previsibilidade do trâmite também é um atrativo para os interessados.
No entanto, a via extrajudicial apresenta limitações práticas relevantes. A primeira delas é a exigência de documentação robusta e da inexistência de oposição. Em muitos casos, o abandono do lar gera litígios, tornando inviável a via administrativa. A subjetividade da comprovação do abandono é outro entrave que dificulta o deferimento do pedido pelos cartórios.
A atuação limitada do tabelião e do registrador, que não podem realizar juízo de valor sobre controvérsias complexas, como disputa de posse ou separação litigiosa, também restringe o campo de aplicação do instituto na via extrajudicial. Nessas hipóteses, a via judicial se torna mais adequada.
Ainda assim, para casos em que há consenso tácito, documentação suficiente e ausência de disputa, a usucapião familiar extrajudicial se mostra uma alternativa viável, segura e eficiente, desde que conduzida com responsabilidade técnica e dentro dos limites legais.
5. PERSPECTIVAS FUTURAS E BOAS PRÁTICAS
O uso da usucapião familiar extrajudicial ainda é incipiente, mas sua tendência de crescimento é evidente, especialmente diante do esforço nacional de desjudicialização e do fortalecimento das serventias extrajudiciais. Para consolidar sua aplicação, é necessário fomentar a capacitação contínua de tabeliães, registradores e advogados.
Uma boa prática que vem sendo adotada é a elaboração detalhada da ata notarial, com inclusão de documentos que comprovem o tempo de posse, o vínculo familiar anterior, a ausência de bens em nome do requerente e quaisquer comunicações do cônjuge ausente. Esse cuidado contribui para evitar impugnações e indeferimentos posteriores.
Também se mostra relevante o diálogo entre cartórios e a Defensoria Pública, especialmente para garantir acesso ao procedimento por pessoas em situação de vulnerabilidade. Parcerias com municípios e programas de regularização fundiária urbana podem potencializar o alcance social do instituto.
Enfim, o futuro da usucapião familiar extrajudicial dependerá da confiança na atuação extrajudicial, da construção de boas práticas e da sensibilidade dos operadores do Direito para equilibrar celeridade, legalidade e proteção à moradia. Com isso, o instituto poderá cumprir sua finalidade social e jurídica com maior eficácia.
CONCLUSÃO
A usucapião familiar extrajudicial representa um instrumento moderno, eficiente e socialmente relevante para a regularização da posse de imóveis urbanos por aqueles que, após o abandono do lar, permanecem sozinhos na moradia. Seu uso promove o direito à moradia, desjudicializa conflitos e fortalece o papel das serventias extrajudiciais no sistema de justiça brasileiro.
Embora ainda cercado de dúvidas quanto à interpretação e aplicabilidade, especialmente no tocante à comprovação do abandono e à ausência de litígio, o procedimento administrativo oferece uma alternativa concreta para a efetivação de direitos fundamentais, desde que conduzido com cautela e rigor técnico.
A atuação coordenada entre advogados, tabeliães e registradores é essencial para garantir segurança e efetividade ao procedimento. Ao mesmo tempo, é necessário avançar na regulamentação normativa e na formação de profissionais para lidar com os desafios práticos do instituto.
A consolidação da usucapião familiar extrajudicial depende da construção de precedentes positivos e do fortalecimento da cultura de pacificação social e respeito aos direitos fundamentais.
Trata-se de um caminho promissor que merece atenção, estudo e prática responsável por parte dos operadores do direito.
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Tatiana C. Reis Filagrana
Advogada. Mestre em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Imobiliário e Direito Processual Civil. Professora. Escritora. Membra da Comissão Nacional de Advogados de Direito Notarial e Registral. Presidente da Comissão de D da Criança e Adolescente – OAB/Blumenau. Mentorada do Professor Marcos Salomão