É possível que seja realizado inventário extrajudicial em que haja débitos fiscais em nome do autor da herança (do falecido)?
Por muito tempo a resposta a essa pergunta era negativa. Ou seja, os herdeiros não conseguiam fazem o inventário do falecido pois este não tirava Certidão Negativa de Débitos (CND). Ocorre que, atualmente, existe sim a possibilidade de fazer inventário sem que o autor da herança tenha a CND. No presente artigo iremos demonstrar a desnecessidade de CND para o inventário extrajudicial.
Com a Resolução 35/2007 do Conselho Nacional de Justiça foi disciplinado, dentro outras coisas, a lavratura de atos notariais relacionados a inventário e partilha. A norma administrativa uniformizou aspectos básicos do procedimento em âmbito nacional.
No que diz respeito a lavratura da escritura pública o art. 22 da Resolução 35 traz o rol de documentos que devem ser apresentados, vejamos: a) certidão de óbito do autor da herança; b) documento de identidade oficial e CPF das partes e do autor da herança; c) certidão comprobatória do vínculo de parentesco dos herdeiros; d) certidão de casamento do cônjuge sobrevivente e dos herdeiros casados e pacto antenupcial, se houver; e) certidão de propriedade de bens imóveis e direitos a eles relativos; f) documentos necessários à comprovação da titularidade dos bens móveis e direitos, se houver; g) certidão negativa de tributos; e h) Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR, se houver imóvel rural a ser partilhado.
A leitura que se depreende da Resolução 35 é que a certidão negativa de tributos diz respeito apenas ao recolhimento dos tributos incidentes que antecedem a lavratura da escritura. Vejamos o que diz o art 15 da Resolução: “ O recolhimento dos tributos incidentes deve anteceder a lavratura da escritura.”. Ou seja, a exigência da resolução se refere apenas aos tributos relativos ao próprio inventário, tais como: o imposto de transmissão causa mortis -ITCMD- ou o imposto de transmissão causa mortis – ITBI- quando há transmissão por meio de cessão de direitos hereditários onerosa.
Seguindo jurisprudência firmada no STF no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs 173 e 394 as normas que condicionam a prática de atos da vida civil e empresarial à quitação de débitos tributários constituem sanção política. O viés da sanção política em relação aos débitos tributários do falecido trata sobre a negativa de que se lavre ou registre inventário extrajudicial sem a certidão negativa ou positiva com efeitos de negativa em relação aos débitos tributários em nome do autor da herança. Apesar de se tratar da inconstitucionalidade de uma norma específica, o julgado é um precedente importante no questionamento das diversas exigências de regularidade fiscal presentes nas normas vigentes.
O Supremo Tribunal Federal caracterizou as respectivas exigências como sanção política, na medida em que tais normas obrigam o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário. O não pagamento de débitos tributários, seja pela existência da dívida, seja por sua discordância não podem ser entraves que impossibilitem os herdeiros de receber o patrimônio do falecido. Tanto pela própria disposição do artigo 1784 do Código Civil que trata do princípio da saisine, quanto pela inconstitucionalidade de haver sanção política pela inadimplência tributária.
Nos casos em que ocorre a sanção política e constrangimento para pagamento dos débitos tributários é possível aferir que os herdeiros ficam sem qualquer alternativa para discutir a obrigação, devendo efetivar a quitação ou o parcelamento débito. A existência de débitos e valores relativos a tributos, sejam municipais ou federais, deve ser discutida nas vias ordinárias, com a garantia constitucional de dilação probatória e do contraditório e ampla defesa
Corroborando com esse entendimento a Receita Federal em portaria conjunta com a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional -Portaria RFB/PGFN n°1.751 – em 02/10/2014, trouxe previsão expressa sobre a dispensa de regularidade fiscal em algumas hipóteses, entre elas o inventário. Vejamos o dispositivo legal em questão: “Art. 17. Fica dispensada a apresentação de comprovação da regularidade fiscal: I – na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo, que envolva empresa que explore exclusivamente atividade de compra e venda de imóveis, locação, desmembramento ou loteamento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de imóveis destinados à venda, desde que o imóvel objeto da transação esteja contabilmente lançado no ativo circulante e não conste, nem tenha constado, do ativo permanente da empresa; II – nos atos relativos à transferência de bens envolvendo a arrematação, a desapropriação de bens imóveis e móveis de qualquer valor, bem como nas ações de usucapião de bens móveis ou imóveis nos procedimentos de inventário e partilha decorrentes de sucessão causa mortis.”
Dessa forma não há como impedir que os herdeiros façam o inventário com a existência de débitos fiscais em nome do autor da herança. Os tribunais e os Tabelionatos de Notas e Registro vêm decidindo a favor da dispensa das certidões negativas ou positivas com efeito de positivas para a lavratura e registro de inventário extrajudicial. Qualquer decisão em sentido contrário é passível de impugnação.
Gabriella Simonetti Meira Pires Barbalho
Mestre em Direito pela Faculdade da Espanha ( UPV/EHU) , Especialista em Direito Civil e Empresarial, Empresária ( graduada em administração de empresas), Advogada e Professora de direito Civil e Professora de direito imobiliário no RID.